E quando a leitura se tornou uma obrigação? 📚 | parte 2
Segunda parte do especial: Hábito de leitura. Ler materiais chatos, de manuais técnicos a livros de crítica. Lidando com o sono ao ler. A questão da memória. Dicas de livros sobre dormir.
Olá!
Esta é a segunda parte do especial de começo de ano sobre hábitos de leitura.
Já falei sobre aspectos solares de ler, como as relações entre amizades e livros e como a leitura faz bem ao coração, baixando efetivamente níveis de estresse [Especial: Hábito de leitura — parte 1]
Agora vamos conversar sobre uma face sombria da leitura: e se preciso ler por obrigação? Para as muitas disciplinas da faculdade? Destrinchar um manual chatíssimo para me atualizar? Para passar num concurso? Para [insira aqui um exemplo de sua vida]?
Nesta edição, vamos falar de ossos duros de roer e calhamaço difíceis de engolir. Vamos falar até sobre aquele soninho que nos bate durante uma leitura enfadonha e sobre reter o lido na memória.
Juro que na última edição da série, em fevereiro, abordarei sobre algo inspirador: ler por puro deleite.
Agradeço a leitura! Tudo isso só acontece por você estar do outro lado da tela.
Procrastinamos com classe, mesmo que, em alguns dias, não seja nada fácil.
Leitura por obrigação, vamos lá!
Um minuto, vamos agradecer!
Antes de prosseguir, queria comemorar que batemos 50% de nossa segunda meta no Apoia.se! 💃
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Encontrinho da Anacronista: só foi possível por conta dos apoios recebidos. O primeiro será no dia 6 de fevereiro, terça, às 19h sobre Ler com mais tranquilidade. Gratuito, aberto a quem quiser e não fica gravado. On-line e via Zoom.
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Hábito de leitura: ler por obrigação
Segunda parte do especial
Minhas credenciais para escrever sobre o tema? Durante a formação na área de Letras, da segunda graduação ao pós-doutorado, passei por muitas obras chatas e insossas, sem contar livros de crítica que não empolgam. Jogando mais baixo ainda, também coloco a carta da advocacia na mesa: tive que sobreviver à leitura de leis, manuais, livros de doutrina e muitos contratos. Até passei num concurso na área jurídica, veja só (mas terminei não assumindo e até hoje divago como seria minha vida se tivesse topado). Enfim, tantas letras quanto grãos num punhado de areia, cuja informação meu cérebro precisava reter por umas semanas.
E confesso: adoro ler um manual na mesma proporção em que detesto vídeos com tutoriais. Usamos a leitura para transmitir conhecimento justamente por ser muito rápida e permitir um aprofundamento — a leitura é uma tecnologia invejável.
Por isso não usei o “prazer de ler” para título deste especial de começo de ano. Seria injusto com muita gente que grama para aguentar certas páginas. Ah, e não tratarei aqui de abandonar um livro que não preciso ler — como um romance chato, cuja desistência não impacta nada a minha vida.
Vamos falar da parte dura mesmo, ler por algum tipo de obrigação. Sei lá, o clássico, passar num concurso, estudar para uma prova, aguentar uma disciplinar, estudar um material para dar parecer e por aí vai.
E aproveitamento: hábito ou prática de leitura? Achei ótimo o segundo termo, proposto em comentário de Marina Bariani à última edição. Você decide qual prefere. Mantive o primeiro no título, pois é ainda bastante comum. Obrigada novamente, Marina!
Descascando a chatice
Quando lemos por obrigação e ainda sem prazer, talvez ajude nos lembrar o “por qual motivo faço isso”. Terminar um curso que me inspira? Ajudar uma pessoa ou uma empresa? Entender um assunto que se alterou e parar de me sentir perdida?
Há uns 15 anos, lembro de ter chorado na biblioteca, num misto de raiva e incompreensão, diante de um texto que precisava destrinchar. Caía na prova de seleção da pós-graduação e foi o famoso sentei e chorei. O inconsciente político, um livro de crítica do Jameson, olhava para mim, imóvel e implacável. Era a terceira vez em que me inscrevia num programa. Não lembro da prova, sei que não caiu esse texto e passei.
Engraçado que terminei estudando bastante o cara, que não é um rótulo de whisky escocês. Fredric Jameson me ajudou a estudar ficção científica teoricamente, sendo um outro apaixonado pelas inconsistências em imaginar o futuro, um apaixonado pela Ursula Le Guin. No final, O inconsciente político me dá uma piscadinha.
Essa parece ser uma história feliz, mas sofri um tiquinho agora ao relembrá-la. Afinal, na época, queria muito entender o famoso texto que tanto elogiavam. O que eu buscava era passar por uma porta naquele estilo do conto do Kafka: a porta era feita para mim, mas tinha um guarda me impedindo. Foram alguns anos para entender pra quê porta, se o resto do mundo está escancarado?
Toda essa conversa mole para te dizer enfim: é bom saber bem por qual motivo gastamos nosso precioso tempo na Terra. Qual o desejo?
Entender se a carga não está severa demais. E até desistir, se for o caso.
A leitura é somente uma ferramenta, servindo ou não às nossas buscas pessoais.
Minha palavra final sobre encarar uma leitura chata por obrigação: se achar que é relevante, talvez o melhor seja resolver pela via do hábito, como escovar os dentes ou tomar banho. Ou pela via da prática, como fazer alongamentos. Evitar catastrofizar. Simplesmente levar como atividades que nos fazem bem, mas nem sempre estamos com vontade na hora.
E depois me conte. Qual a leitura terrível que você teve que fazer? Como fez para encarar?
E quando ler me dá sono?
Para algumas pessoas, não tem jeito: começou a folhear algo, as pálpebras pesam, o corpo amolece, o bocejo surge, a cabeça cai.
Essa pergunta recebo bastante: como ler, se sempre fico com sono?
Realmente, a leitura nos coloca num lugar de relaxamento silencioso e pode causar sonolência. Muita gente até usa essa característica clássica a seu favor, pegando um livro gostosinho antes de dormir. Mas e se a vontade surge em momentos aleatórios do dia? Ou durante a leitura de um material que preciso ler?
Olha, eu diria: descanse.
Feche os olhos, tire um cochilinho. Se puder, durma. Sei que o capitalismo odeia o sono e socialmente é quase um tabu (imagina, desmaiar de babar na mesa do escritório ou na biblioteca?), mas dormir é essencial ao organismo.
É sintomático que, na escola, aprendemos tão pouco sobre o sono, embora a privação total de sono mata, assim como a falta de ar, de água ou de comida. A privação dessa necessidade essencial do organismo é glorificada, embora haja muitos problemas de saúde física e mental que possuem relação com o sono.
E meu abraço para quem não dorme bem, algo bastante comum. Sobre dores de cabeça ou crises de insônia mais constantes, vale investigar com calma, pois há muitas causas possíveis (recentemente minhas dores de cabeça foram caso de oftalmologista, inclusive, inaugurei minha fase de óculos de leitura).
Em suma, procure ler em horários que teu corpo está descansado, com a cabeça tranquila e celular afastado. Repare que temos um limite de páginas que conseguimos ler sem nos cansar. Cada pessoa tem o seu. É normal, como para qualquer outra atividade. Somos nosso próprio corpo.
O cochilo da memória: lendo calhamaços obrigatórios
O sono ainda possui uma profunda relação com a memória e infelizmente diante de leituras obrigatórias precisamos reter o que lemos.
Assim, se você precisar ler muita coisa e ainda não tem costume (um exemplo clássico seria uma graduação em ciências humanas ou uma preparação para concurso público), está autorizada a técnica do cochilo: você lê o que conseguir, tira um cochilinho e segue lendo. Minha querida amiga Vanessa Guedes, da Segredos em Órbita, contou sobre sua decisão de cursar a graduação em Letras na Suécia e sistematiza o tal do conselho:
“Foi minha amiga Ana Rüsche que recomendou: tirar sonecas entre as sessões de leitura. Esse tipo de curso exige muito tempo de leitura e é fácil ficar mentalmente cansada com tanta coisa para ler, digerir e depois escrever a respeito. A dica da soneca parece meio nada a ver, mas confesso que é a coisa que mais me ajuda a manter a mente afiada nas maratonas de leitura. Um cochilo de 10 min a cada 200-300 páginas opera milagres aqui.” [retirado do Curtas respostas sobre meditação e poesia]
Na próxima edição, vou comentar sobre diários de leitura, que ajudam também nessas ocasiões.
Espero que essa conversa de hoje tenha sido útil! Muita força aí nas leituras que precisamos encarar, pois muitas vezes estão ali dentro de uma busca e envoltas por um querer bonito.
📚 Livros sobre dormir
Indico dois livros que são perfeitos para você dormir em cima: com certeza os dois autores vão encarar como um elogio:
Por que nós dormimos: A nova ciência do sono e do sonho, do neurocientista Matthew Walker. Livro de divulgação científica da área médica, com muitos detalhes e casos interessantes. Trad. Maria Luiza Borges, Intrínseca.
24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, do crítico de cultura Jonathan Crary. Ensaio longo sobre aspectos sociológicos a respeito de dormir, mostrando que as noções de prontidão e vigília se relacionam com a obrigação de produzir e de consumir no século XXI. Trad. Joaquim Toledo Junior. Ubu.
Hábitos de leitura: próxima e última edição do especial
Para fechar a série sobre Hábitos de leitura, em fevereiro, tratarei dos seguintes temas dentro da chave de ler por puro deleite:
Diários de leitura
Obras curtas geniais
Catataus para desfilar
Leitura de poesia
Sair em passeio: livrarias e bibliotecas
Acrescentei o último tópico depois de ler o comentário do Tarsis Salvatori, sugerindo abordar as bibliotecas públicas, uma ótima lembrança. O que mais falta?
Aguardo sugestões nos comentários até 31/1 (e se não der tempo, vale deixar mesmo assim!).
📚 Ler sobre ecologia
O Filamentos começa seu terceiro ano de atividade, encontros de divulgação científica sobre literatura e ecologia. A curadoria é minha, com a produção da editora Bandeirola. Venha participar conosco!
3 de fevereiro, sábado, 14h: A terra dá, a terra quer, livro lindo de não ficção de Antônio Bispo dos Santos (Ubu); conto “Má sorte”, de Paulliny Tort, publicado no livro Erva Brava (Fósforo)
On-line e mensal. Não é preciso ler antes dos encontros. Para participar, basta apoiar o projeto no Catarse.
📚 Ler sobre viagens
A Paula C. Carvalho e eu inauguramos o Leituras Extraordinárias este ano com Samarcanda, de Amin Maalouf, trad. Marília Scalzo (Tabla).
28 de fevereiro, quarta, com a participação de Jemima Alves
Gratuito e presencial. O clube acontece na Livraria da Tarde, em São Paulo (SP). Todos os detalhes aqui.
📚 Ler Álvares de Azevedo
Amanhã, terça-feira, 30/1, na Livraria da Tarde, vamos conversar sobre a edição comemorativa de Noite na taverna, centésimo título da Carambaia.
A Silvia Nastari, que assinou o projeto gráfico, estará comigo (assinei o posfácio) e com Luciana Gerbovic, mediadora, para conversarmos sobre a obra. 19h, Livraria da Tarde. R. Cônego Eugênio Leite, 956, Pinheiros, São Paulo (SP).
📙 Curso: Escrita Acadêmica, Escrita Inventiva — do ensaio ao artigo e outras formas de não ficção
Colaboro com a programação de cursos de verão da FLACSO — Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, oferecendo um minicurso de 4 encontros on-line, com início em 19 de fevereiro. [Detalhes]
Sobre esta edição
Para escrever esta edição foi necessário lembrar das leituras mais chatas da minha vida, resistir ao sono muitas vezes e procurar ser útil para quem precisa ler por obrigação.
Que a gente possa procrastinar com classe, mastigando com elegância os nacos de calhamaços insossos que a vida nos oferece.
Muito obrigada!
Todo esse esforço só é válido, pois você chegou a essas linhas. Muito obrigada pela leitura.
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Em 2024 e em todos os dias,
todo poder à alegria,
ao desejo e
à imaginação!
Estou neste momento lendo Fredric Jameson e me agarrando mesmo na força do hábito e da necessidade de concluir o mestrado hahah
O que me ajuda a ler coisas chatas ou obrigatórias é fazer o famigerado pomodori (ou como eu aprendi com o Augusto, do Efetividade, a Galinha Temporal): estudo/leio 60 minutos tiro 15 para andar, comer, beber, fazer qualquer coisa que não seja ler/estudar.
E se bate o cansaço ou o sono no meio da leitura, prá mim, eu belisco alguma comida. Não sei por que mas comer afasta meu sono.