Opiniões fortes 📚
Celebrando o contraditório e o ridículo. É impossível ser coerente na América Latina. A escrita deliciosa de Rosa Montero.
Olá!
Se a internet é o país das opiniões fortes, hoje é o dia de se esbaldar.
A edição de hoje celebra nossa capacidade de exercer tanto o contraditório quanto o ridículo.
Para quem gosta da Rosa Montero, está especial: além de minhas opiniões sobre a escrita da espanhola, trago uma resenha de Taís Bravo sobre o livro O perigo de estar lúcida.
Nas dicas, trago leituras sobre a emergência climática a partir de minha pesquisa acadêmica, indico newsletters que gostei e faço convites.
Espero que goste da edição!
Procrastinemos com classe. Sempre.
Com carinho,
Ana Rüsche
Opiniões fortes
A internet é o país das opiniões fortes. A opinião forte é uma das formas da propulsão de posts. Assim como um veleiro pode se locomover a motor ou a vela, uma postagem pode se locomover na base da fofoca, do humor, do furo jornalístico ou da opinião forte, entre outras possibilidades. E uma das formas de mostrar opiniões fortes é fabricar a coerência. A indignação com lógica.
Mas como ser coerente na América Latina? Onde a gente não sabe se está com cansaço, com labirintite ou com dengue? Onde a mentira estrutura cadeias inteiras de pensamento muito bem financiadas? Onde fingir estar de acordo é a norma, onde só a fofoca salva. A coerência? Mandou beijos.
Dessa forma, tentei elaborar duas opiniões fortes. Como são fabricadas, vão se mostrar muito coerentes, ao ponto de você não conseguir discordar de mim ao final (mentira).
Já faço o convite para você colaborar com outras opiniões injustas ou coerentes nos comentários. Afinal, a internet é o país das opiniões. Principalmente das impensadas. Assim, bora jogar o jogo.
O benefício da leitura de livros irritantes
É excelente para formar o caráter a leitura de livros que nos desagradam. A revolta frutífera. A criatividade aguçada pela discórdia. O tapa na cara que recebemos de argumentos com os quais discordamos veementemente (muitas vezes, nos mostram nossa própria incoerência). Foi disso que as redes sociais nos privaram. Montando bolhas de pessoas com a mesma opinião, nos privam do desagradável para distribuirmos corações no scroll infinito. Isso não afia o contraditório e não nos leva adiante.
Recomendo a leitura de livros irritantes. Não falo de livros enfadonhos, muito sonolentos. Ou posts irritantes, muito curtos. Isso existe aos montes e não dignifica o caráter. Digo livros que tratam de coisas que amamos. Mas que, em algum ponto, nos banham o rosto com uma quentura. Que nos tiram a razão. Indico.
Se você gosta de argumentar pela casa falando com as paredes, verá que tudo vai acontecer com mais vontade. Na realidade, esse exercício pode até ser útil para nos recordarmos: no quê acreditamos? No quê pensamos de verdade?
Paradoxalmente, nos sentirmos incoerentes, com esse afã de ter razão, faz muito bem à saúde. Saber cultivar o nosso próprio senso de ridículo é fundamental. E aí uma outra opinião forte minha: quanto maior o seu próprio senso de ridículo, melhor.
Afinal, as pessoas mais sexies também são patéticas. Se você olhar bem, vai reparar que há um traço de ridículo na pose, nas roupas, nos gestos. E isso provoca uma espécie de riso. É essa espécie de riso que permite a gente se apaixonar por alguém.
Um exercício prático a partir de Rosa Montero
Ler Rosa Monteiro é como comer paçoquinha. Impossível não ter vontade de comer mais uma (se sua opinião forte for detestar paçoquinha, imagine algo de teu agrado). Rosa Montero Gayo, espanhola de Madrid, nascida em 1951, tem uma longa trajetória no texto. Imagino que ela já estava rascunhando ideias da placenta da própria mãe, a mulher tem uma infinidade de obras.
A Rosa Monteiro escreve com uma espécie de manteiga de amendoim nas palavras, tudo parece fascinante. Por exemplo, o livro dela sobre a Marie Curie, A ridícula ideia de nunca mais te ver (2013), me influenciou muito, ao ponto de tentar modificar completamente o jeito de escrever determinada prosa, como se eu pudesse pegar um pouco daquele aroma e sabor — lógica bem pouco coerente, admito, seria a mesma coisa de querer ser tão irresistível quanto uma paçoquinhas comendo várias (eu até tento, juro).
Olha este trechinho sobre os esforços da Curie:
"Tudo isso era proibido e envolvia perigo: me faz recordar dos comoventes esforços daquelas professoras que continuavam dando aula secretamente às meninas no terrível regime dos talibãs." (trad. Mariana Sanchez, pos. 526)
ou sobre romances:
"Além disso, quanto mais você se aproxima do essencial, menos pode nomeá-lo. O tutano dos livros está na esquina das palavras. O mais importante dos bons romances reside nas elipses, no ar que circula entre os personagens, nas frases menores." (pos. 1870)
Feito os elogios, foi uma sandice a minha leitura de O perigo de estar lúcida (2022). Afinal, discordo frontalmente da tese central do livro. Só que é a Rosa Montero escrevendo, né? Um curto-circuito emocional. A tese do livro, resumindo de forma injusta, seria que a loucura pode contribuir com ato criativo. Hum, olha, talvez com alguns tipos de loucura. Mas já tive uma depressão paralisante, daquelas de só olhar o teto. E nesse período longo, de meses chegou a um ano, não consegui produzir quase nada. Até tinha alguma vontade, mas não era capaz de sustentar. Aliás, nem de me sustentar. Assim, sou gata escalada sobre algum tipo de "vantagem" que se tenha por estar numa fase de saúde mental zoada.
Entretanto, para ser coerente com meu argumento, discordar da Rosa Montero me fez um bem tremendo. Consegui esbravejar contra as almofadas, explicar minha lógica para as paredes e me sentir enfim tão ridícula quanto aliviada. Quase feliz. A coerência é uma das formas mais sublimes de loucura.
Indicação incoerente de leitura
Apesar de tudo, convido você a ler o livro da Rosa Montero, O perigo de estar lúcida. Porque eu acho que a graça dos livros também é provocar debates, provocar reflexões. E acho que a autora espanhola provoca. Vale ler com a caixa paçoquinhas ao lado.
O livro tem, para te instigar, uma coisa com a qual concordo: alguns pensamentos antissistêmicos são vistos como loucura. E sim, isso beneficia artistas. O olhar estranhecido sobre a realidade. Enxergar as coisas como uma criança cheia de perguntas, como um alienígena recém-chegado, enfim, como alguém que não reconhece a lógica óbvia das coisas (no capitalismo, geralmente tudo é bem pouco lógico, vide o que estão fazendo com o único planeta que temos).
Conversando com Vanessa Guedes, da Segredos em Órbita, sobre o rascunho desta edição, uma das pistas dela é que esse livro tem muito a ver com um outro título da autora madrilenha: A louca da casa (2003). Minha amiga parece estar correta, como sempre, pois a Montero cita bastante essa outra obra. Vou colocar na pilha.
Por fim, esses dias, vagando pelo Instagram, nas paragens em que tudo parece ser bastante coerente, me deparei com uma postagem ótima. Afinal, se não fosse por esse senso de aguardar, apostar e acertar, o joguinho das redes sociais não seria tão viciante.
Encontrei um texto da Taís Bravo sobre o livro da Rosa Montero. Daí, propus para a Taís republicar o texto aqui e ela topou (obrigada novamente!).
Pronto! Esses foram meus parágrafos com opiniões fortes, que terminaram macias como um gatinho ronronando.
Escrever é praticar o fracasso1.
O perigo de estar lúcida
Por Taís Bravo
O perigo de estar lúcida é um livro que propõe uma aproximação arriscada entre criatividade e loucura. Arriscada porque, ao associar pessoas que escrevem a uma certa tendência a questões de saúde mental, Rosa Montero escolhe um caminho de interpretação que romantiza tanto o trabalho de criação quanto o sofrimento psíquico.
Este é um pressuposto que eu, de cara, recuso, porque acredito que existem outras vias para pensar a proximidade entre artistas e problemas de saúde mental. É possível, por exemplo, prestar atenção à materialidade, como a vida financeira instável e com poucos recursos de apoio institucional pode provocar uma série de distúrbios na vida de qualquer pessoa, sejam elas artistas ou não.
Porém, apesar de discordar profundamente do ponto de partida de Rosa Montero, gostei de ler O perigo de estar lúcida, porque a autora escreve muito bem. Tão bem que mesmo achando seu livro uma coleção de gatilhos, não conseguia parar de ler seus ensaios.
O perigo de estar lúcida talvez contribua muito pouco para estimular um debate produtivo sobre criatividade e saúde mental, já que sua tese, ao fim, parece ser a crença de que o sofrimento é o preço a se pagar por ser uma pessoa criativa. Uma teoria que, cabe pontuar, é de um terrível fatalismo cristão.
Mas não deixa de ser um livro que nos faz pensar, principalmente na pergunta: Afinal por que escrevemos? Por que desejamos criar qualquer coisa?
E esse é o ponto que me fisgou. Rosa Montero nos conduz por um grande elogio à imaginação e uma recusa à normatividade.
Se desviamos da lógica do sacrifício que a autora escolhe como ponto de partida, dá para escutá-la sussurrando: Hey, baby, take a walk on the wild side. E aí, sim, pode ser um caminho bem mais interessante junto com selvagens, descompassados, monstros, artistas.
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Taís Bravo é escritora. Doutoranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na Puc-Rio, coordena o Laboratório de Escrita Recorrente. Mantém a newsletter Trajetos de escrita.
📚 A emergência climática: o que ler?
Agradeço novamente todas as mensagens sobre a última edição da Anacronista, na qual trouxemos a fala da escritora e historiadora Nikelen Witter transcrita, diretamente de Santa Maria (RS), com o apoio do projeto Filamentos.
Muita gente me perguntou depois algo simples sobre o tema: o que ler?
Selecionei dois links que podem ser úteis. Estou escrevendo um livro acadêmico sobre isso, mas só sai ano que vem. Assim, atendendo à urgência, segue:
» Bibliografia: aqui vai a ementa do programa da disciplina de Pós-Graduação na FFLCH-USP que ministrei no ano passado, "Ficções Científicas Ecológicas e Mudança Climática: Antropoceno e Ecocrítica", uma contrapartida de meu pós-doutorado.
Há narrativas de diferentes extensões e nacionalidades, além de obras críticas.
» Entrevista: "A Ficção Científica, a urgência climática e a importância de diálogo entre os saberes" é o tema de uma entrevista que concedi ao Bruno Matrangrano para a revista acadêmica Literartes no início deste ano.
No próximo encontro on-line do Filamentos, atividade para conversar sobre literatura e ecologia, no dia 8 de junho, às 14h, vamos conversar sobre a autobiografia política de Vandana Shiva: Terra viva — Minha vida em uma biodiversidade de movimentos (trad. Marina Kater, Boitempo), além de resolver sobre a lista de leituras do próximo semestre.
Para participar do Filamentos, basta apoiar o projeto no Catarse.
📚 Se estiver em São Paulo
Hoje, segunda, 27/5 | Vamos conversar sobre Exploração, da peruana Gabriela Wiener (trad. Sérgio Molina, Todavia). Paula C. Carvalho e eu mantemos o Leituras Extraordinárias, atividade que acontece na Livraria da Tarde. Neste encontro, teremos as presenças maravilhosas de Pilar Bu, do Vértebra Latina, e do Vinicius Barbosa, do Latina Leitura.
Livraria da Tarde. Rua Cônego Eugênio Leite, 956, Pinheiros, São Paulo (SP). Gratuito. Grupo do WhatsApp. Se puder prestigiar e realizar sua compra na livraria, agradecemos!
Em 6 julho, sábado: estarei n’A Feira do Livro, que acontece na praça Charles Miller, no Pacaembu, junto com George Amaral, autografando o “Manual de sobrevivência da escrita”, no estande da Bandeirola.
Aproveito para agradecer quem conseguiu se animar, mesmo com garoa e frio, para nos dar um abraço na livraria Martins Fontes da Paulista!
Sincrônicas
📖 Rio Grande do Sul: Conseguimos arrecadar 32 mil no Aulão — Escritores pela reconstrução do Rio Grande do Sul, organizado pela Vanessa Guedes e com adesão de 16 escritores e escritoras. Aprendi muito neste encontro.
Deixei também meu apoio ao Viracasacas Podcast, com sotaque bem gaúcho, pois discutem bem toda essa crise humanitária e ecológica. Vale contar: estava tricotando no sofá ao ouvir este episódio e meu relógio de pulso tocou um alarme, avisando que eu estava tendo perigosamente batimentos acelerados estando parada. É, gente, emociona mesmo.
📖 "Tá todo mundo tentando: histórias para ler na cidade" é o título do livro de crônicas da Gaía Passarelli, a mestra da newsletter. A autora promete nos levar para conhecer o mundo, de Salvador a São Francisco, do frenesi à introspecção. Já adquiri o meu na pré-venda. Garanta o seu aqui.
📖 Fazendo drama é a newsletter da Renata Corrêa recém-lançada. Gosto de tudo que a Renata escreve, prosadora, roteirista e ensaísta de mão cheia. Estou muito feliz com a novidade. A primeira edição vai aqui.
Sobre esta edição
Para produzir esta newsletter foram necessárias 3 horas de redação, uns meses de enrolação, 2 colheres de café em pó, quantidade insignificante de tinta de caneta de baixa qualidade e 4 folhas de papel de boa qualidade.
Com os apoios recebidos, consegui remunerar minimamente a Taís Bravo pela cessão do texto, assim, ela pode almoçar em algum lugar legal. Também contratar os serviços da Victória Haydée que me ajuda nos bastidores, para que a newsletter não saia do prumo.
Por fim, consegui oferecer mais um Encontrinho da Anacronista. Nossa inspiradora conversa de maio foi sobre silêncio, o que renderá o texto da próxima edição.
O próximo Encontrinho será em 11 de junho, todas as pessoas estão convidadas, basta se inscrever aqui.
O sorteio para apoiadores foi do livro Exploração, da Gabriela Wiener. Quem apoia, em algumas faixas, além das atualizações, também recebe notícias dos bastidores da newsletter.
Considere também apoiar esse trabalho! 🧡
Muito obrigada!
Agradeço demais a sua leitura. É por isso que escrevo, além de querer expressar indignações bestas.
Se gostou da edição:
🧡 Aguardo sua opinião forte no chat. Venha ser deliciosamente incoerente!
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Canais
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Em 2024 e em todos os dias,
todo poder à alegria,
ao desejo e
à imaginação!
Créditos
Pesquisa e texto: Ana Rüsche
Revisão, padronização e publicação: Victória Haydée
Os livros A ridícula ideia de nunca mais te ver e O perigo de estar lúcida foram publicados no Brasil pela Todavia, com a tradução de Mariana Sanchez. A louca da casa possui várias edições brasileiras.
Eu estou com vontade de ler Os Perigos de Ser Lúcida tem um tempo. Agora aque li a edição fiquei mais curiosa ainda! Eu conheci a Rosa Montero de um jeito engraçado: fui no mercado com mamãe e ela viu um livro da Rosa na prateleira perto do caixa. Era o Paixões. Com o perdão da piadinha ruim, foi paixão a primeira vista. Pensando aqui agora, faz um tempo que não vejo livro no mercado...
Feliz demais de contribuir para esse debate e para essa newsletter que eu amo, Ana! Mais uma vez obrigada pelo convite 💛