📚 Como retratar o heroico em seu tempo histórico?
Sobre o filme "Argentina, 1985" e a diluição do heroico, um ensaio de T. P. Mira-Echeverría
Olá!
Espero que você tenha começado 2023 da melhor maneira! Nunca é simples. Bem, por aqui, cumpro minha modesta promessa de começo de ano, “caprichar mais ao cozinhar”. 💛
Esse é a segunda edição da Anacronista sobre Argentina, 1985 (dir. Santiago Mitre, 2022), estrelado por Ricardo Darín. O filme foi indicado ao Oscar de melhor filme internacional.
Depois da Copa, vamos ter um Oscar argentino? É aguardar o mês de março.
O filme é baseado em fatos reais: o famoso Julgamento das Juntas, “um tribunal civil contra comandantes militares que tinham estado no poder. Começando em 22 de abril de 1985, o julgamento durou muito tempo, cerca de 530 horas de audiência e 850 testemunhas”, segundo o resumo da Amazon Prime. De forma trágica, um dia depois da indicação ao Oscar, faleceu o ator Claudio Da Passano, que contracena naquele bonito diálogo dentro do teatro.
Escolhi tratar do tema, pois fala diretamente ao Brasil 2023: a ausência de punição a crimes gravíssimos num passado assombram-nos num presente, cuja violência irrompeu, uma vez mais, no último fatídico 8 de janeiro.
Esta edição especial traz um ensaio crítico de T. P. Mira-Echeverría diretamente de Buenos Aires, mostrando os problemas da narrativa fílmica não dar conta do heroísmo real dos fatos. Está belíssimo, foi uma honra traduzir. Um texto que serve para refletirmos sobre como narrar o agora brasileiro às futuras gerações. Inclusive, sobre outras situações de violência de Estado, perpetuadas sobre minorias.
Você pode a primeira edição da série, com a participação de Laura Ponce, escritora e editora argentina, e um comentário meu, mais empolgado com o filme.
Agradeço a leitura! Nada disso teria sentido sem você, que nos lê do outro lado. 💙
Vamos ao ensaio!
Argentina, 1985 ou a diluição do heroico
Por T. P. Mira-Echeverría
Uma querida amiga me pediu uma crítica ao filme Argentina, 1985 (dir. Santiago Mitre, 2022) para um público de fora do país. Assim, creio que é razoável primeiro esclarecer o contexto a partir do qual farei minha crítica ao filme.
Uma infância sob o período ditatorial na Argentina
Tenho 50 anos, o que me coloca no mesmo espaço geracional do filho caçula do procurador, Julián Strassera (o garoto que se chama Javier no filme), portanto, estamos no mesmo turbilhão de décadas sofridas por compatriotas. Em 1985, eu tinha 14 anos, o que significa dizer que vivi quase toda a minha infância sob o período ditatorial. Quando a ditadura de 1976 começou, tinha 5 anos de idade e, quando terminou, 11 anos.
Meus pais eram ambos militantes peronistas. Minha mãe fazia parte de uma longa tradição de sindicalistas, primeiro anarquistas e depois peronistas, que imigraram do sul da Espanha. Ela sempre teve e segue tendo muitas atividades políticas. Meu pai foi sindicalista de base no Grêmio dos Metalúrgicos e, durante toda a vida, defendeu trabalhadores.
Durante a ditadura, vi meu pai ter que se esconder para evitar ser "sugado", como se dizia naquela época, ou seja, preso pela repressão. Meus pais tiveram que queimar livros adorados, no caso de invadirem a casa. Escutei o povo contando sobre como os militares entravam nas casas de bairros populares de minha cidade, situada na província de Buenos Aires, no centro do país: nos bairros da classe trabalhadora, em Fátima, etc. À noite, ouvia tiros no que é agora a rodovia Pan-Americana.
Quando estava na escola, costumava ver os tanques passando pela rua de trás. Lembro-me vividamente de como sacaram meu pai do carro, com minha mãe e minha avó — um monte de soldados armados com armas pesadas; de como revistaram todo o Fiat 600 buscando sei lá o quê. Chegaram até a revirar o buquê de flores que minha avó carregava consigo para o cemitério. E isso não aconteceu uma vez só, aconteceu várias vezes. Meu cotidiano, dos 5 aos 11 anos de idade, foi estar ao redor de gente com roupas camufladas e armas pesadas, surgindo do acostamento ou parando o trânsito de forma aleatória.
Conheci pessoas que passava algum tempo em casa. Depois, percebi que se escondiam. Algumas nunca mais voltaram, outras escaparam por sorte.
Narro tudo isso não para falar de mim, mas para explicar que cresci na época em que todos nós fomos vítimas diretas ou indiretas da ditadura militar de 1976. Para mim, os monstros não tinham dentes afiados, nem cabeças imensas, nem chifres ou tentáculos. Para mim, os monstros tinham insígnias, uniformes militares e armas pesadas. O Videla aparecia em meus pesadelos.
Como era uma criança curiosa, sempre ouvia as conversas de meus pais com suas amizades militantes atrás das portas. Já nessa altura, falava-se de tortura, de quem tinham conseguido escapar, de quem soltavam para logo depois prenderem novamente. Cresci com o terror. Antes de tudo, sei o que significa "terrorismo de Estado". Cresci com o terror e, até hoje, preciso confessar, ainda sinto uma profunda mistura de horror e ódio em relação àquilo a que chamamos de "milicos".
O filme, um problema de concepção
Expliquei tudo isso para que saibam o motivo, apesar das muitas boas intenções, de minha decepção com este filme, “Argentina, 1985”, em um sentido pessoal. De um ponto de vista mais objetivo e mais filosófico, me parece que o filme carrega um problema conceitual imenso. E é sobre esse último ponto que vou tratar a seguir.
O filme apresenta um ponto de vista, como qualquer outra obra de arte, e limita-se a uma previsão, a uma determinada fatia da realidade que quer enfatizar. Às vezes, as obras de arte passam por uma supressão de contexto para gerar empatia com o público sobre o fato histórico que narram. Estas descontextualizações ou extrapolações precisam ser feitas de uma forma muito delicada e precisa, para não cair numa paródia ou numa reconstrução absoluta — em outras palavras, para não virarem propaganda.
E é evidente que, no filme, existe uma descontextualização realizada naquele estilo fotográfico de retrato, com a pessoa nítida no primeiro plano e a paisagem desfocada e nebulosa de fundo. Um contexto borrado que faz com que as personagens atuem em uma névoa ou ainda com categorias contemporâneas, fora de seu próprio tempo.
Talvez a melhor característica do filme foi colocar os diálogos entre o procurador Julio Strassera (interpretado por Ricardo Darín) e o dramaturgo Carlos Somigliana (interpretado pelo recém-falecido ator Claudio Da Passano) dentro de um teatro, que poderia muito bem ser um cinema, na tradição shakespeariana do a play whithin a play, dispositivo para colocar roteiristas e direção em diálogo com a personagem central, driblando o tempo histórico a partir de uma auto-referência com o próprio filme.
Agora, vou abordar um problema do filme — gostaria de falar das virtudes da obra, que são muitas, mas me parece que este problema não é menor e ofusca muitas partes boas da narrativa, a ponto de retirar o valor dos acertos, como se o filme estivesse constantemente a contradizer-se, deglutindo-se a si próprio.
Este problema surge do tom narrativo adotado, mas baseia-se numa questão muito mais profunda do que somente o estilo. É o encaixe histórico de 1985 (não seu contexto). Com sinceridade, eu esperava um filme muito mais próximo de The Official Story (La historia oficial, dir. Luis Puenzo, 1985) ou The Night of the Pencils (Héctor Olivera, 1986), mas, quando fui ver, me vi diante de um episódio de CSI ou de Law & Order.
A magnitude do fato histórico: muito maior e muito mais comovente
A escolha de um estilo é perfeitamente defensável e ninguém se pode opor à livre criatividade de artistas, mas se essa for a escolha de tom narrativo para um fato histórico (e não qualquer fato!), então é preciso prestar atenção a um problema que aparece de forma muito perceptível: o perigo de transformar um dos mais importantes julgamentos históricos do mundo num simples caso anedótico, como um episódio de uma série televisiva. Em outras palavras, o problema é trivializar o feito e, neste caso específico, liquefazer a importância do que aconteceu.
O problema está na diluição da magnitude deste acontecimento histórico em uma espécie de clichê de filmes de tribunal — da promotoria contra a mega-corporação ou a máfia ou contra o que quer que seja — e isso não só reduz a importância de tudo o que estava sendo combatido em juízo, mas também da própria promotoria, lutando por uma justiça tão transcendental que nunca foi "apenas mais um julgamento".
O Julgamento das Juntas nunca foi apenas mais um julgamento. Não foi tachado assim nem por dentro nem por fora. Aqui reside o cerne de todo o filme e também de sua falha, nessa espécie de diluição da importância histórica ao “filme de aventura” ou “filme biográfico”, um biopic sem estar em função da História ou do julgamento, criando uma jornada do herói, com flerte evidente a essa figura literária: o chamado à aventura, a recusa, o velho mentor, o aliado no caminho, as provas, a descida ao inferno e o despontar de um herói que transfigura o seu ser e o seu entorno...
Se na narrativa isso tudo é fascinante, essa criação pode desnaturalizar um um acontecimento histórico, pois insere um afastamento do conjunto humano para criar um sistema simbólico próprio (extrapolado, claro) e, portanto, essencialmente (por definição) não-histórico.
Vamos falar sobre essa incorporação e porque é importante não só para a História, mas também para o desenvolvimento da própria personagem central.
A Argentina estava saindo de uma ditadura, começada em 1976 e terminada com as eleições de 1983. Um ano antes, em 1982, perdera uma guerra contra uma das maiores potências mundiais, a Guerra das Malvinas contra o Reino Unido, e foi esse o fato acelerador do fim da ditadura (os militares acreditavam que, ao construírem um inimigo comum, desviariam a atenção de si próprios). Nos primeiros anos de democracia, de 1983 até os Julgamentos das Juntas, viveu-se com um medo constante do retorno dos militares. Afinal, já tinham feito isso antes. Aquela não era a primeira ditadura da qual saímos: desde 1930, tivemos golpes de Estado periódicos, 1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1976. Então, quem poderia garantir que aquela não era apenas mais uma na longa cadeia de ditaduras que a Argentina viveu?
O que o promotor Julio Strassera e sua equipe faziam era realmente heroico, mas não no sentido mítico-literário, não como um clichê de Hollywood: não estavam lutando contra um monopólio, contra uma megacorporação ou contra uma máfia, lutavam contra um aparato de poder militar direitista derrotado, moribundo, mas não morto. Algo que, naquela altura, ainda tinha a capacidade de agir e que podia, a qualquer momento, ressurgir e dar início a outro golpe, algo que, de fato, tentaram fazer mais tarde.
É por isso que digo, o tratamento desenraizado traz consigo o problema de transformar um movimento heroico e democrático, como foi o Julgamento das Juntas, em uma simples história comum de coragem, boas jogadas e esperteza, quando foi, na verdade, algo muito maior, mais importante e muito mais comovente do que essa visão hollywoodiana.
O tema e também as figuras históricas retratadas nesse filme deveriam ter sido abordadas, na minha opinião, não como uma mera série televisiva às custas da relevância histórica atual. Deveriam abordar o papel capital que tiveram não só para o nosso país e para o mundo, mas também para todos nós que vivemos sob aquele tempo de terror. Muita gente sentia, naquela altura, que a possibilidade de justiça tinha nos sido roubada. Crescemos com a sensação da defesa impossível, da falta de proteção absoluta, do medo constante. A falta de esperança. E os Julgamentos devolveram-nos a ideia da existência da Justiça, de que tanta dor e tanta morte não ficariam impunes. Creio que noção de termos um divisor histórico se diluiu a partir do tratamento banal, reduzindo-o a uma simples história de levantar provas, encontrar o momento certo e dizer algo brilhante. Os Julgamentos foram e representaram muito mais do que isso.
Depois do Julgamentos, me permiti uma aproximação com o Partido Comunista, nunca teria feito isso antes por causa do terror que ainda me invadia. Foram esses juízos que me deram a coragem suficiente para continuar com a minha vida, paralisada naquele medo constante.
Essa diluição pela jornada do herói ou pelo formato de episódio de Law & Order não só passou por cima dos protagonistas, não também das heroicas testemunhas; do Poder Legislativo da época, que votou contra a lei da auto-anistia; do Poder Executivo, que levou adiante o projeto de lei como a primeira lei do governo; sobretudo passou por cima do povo, que elegeu aquele presidente, Raúl Alfonsín, com uma campanha eleitoral pró-julgamento de militares.
Incluir esses atores não teria retirado o protagonismo de Julio Strassera ou de Moreno Ocampo ou de sua equipe, mas teria dado uma dimensão mais aproximada à importância de sua realização — não como um grupo isolado, mas como a ponta de lança de muitas pessoas que estavam gritando "Nunca mais" (título do relatório da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas - CONADEP), um desejo que ainda não era uma realidade. Aquele bando de pessoas que, como diria H. G. Wells, não viveu nem morreu em vão.
Esse ensaio foi escrito por T. P. Mira-Echeverría exclusivamente para a Anacronista.
T. P. Mira-Echeverría (Argentina, 1971) possui doutorado em Filosofia. Sendo uma das principais vozes do new weird na América Latina, escreve e pesquisa a relação entre ficção científica, filosofia e mitologia. Suas obras foram traduzidas e publicadas em diversos países, como Bulgária, Cuba, Espanha, Estados Unidos, França, Grã Bretaña e Itália. No Brasil, sua ficção foi publicada pela Monomito, com o conto À sua imagem (2020) e a novela Alvorada em Almagesto (2021).
Extras
📺 O filme Argentina, 1985, indicado ao Oscar, está disponível no Prime Video.
📚 Livro com o relatório Nunca más, redigido pela CONADEP - Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas [em espanhol].
📝 Argentina, 1985: Screenplay, roteiro do filme, e-book no Kindle Unlimited [em inglês]
💌 Não deixe de conferir a primeira edição da Anacronista sobre Argentina, 1985, com a escritora e editora argentina Laura Ponce e um comentário mais empolgado meu. Ao ler, imagine retumbar as vozes da população na posse presidencial naquele grito tão comovedor: “sem anistia”.
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Octavia Butler além de Kindred: o Thiago Ambrósio Lage apresenta argumentos para ler essa escritora fundamental (que T. P. Mira-Echeverría também gosta de ler).
Para dicas de filmes (com livros): um salão literário comigo, cinco livros e cinco filmes, da Carol Sandler.
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Escrita contemplativa, da Surina: uma técnica do zen-do para a escrivaninha.
Trajetos de escrita, da Taís Bravo: com passeios do mês e como se encontrar na escrita.
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Estava ansiosa por essa continuação.
Texto incrível!
que edição linda e quantas conversas profundas esse filme belíssimo possibilita. eu realmente adorei argentina 1985 e como ele ressoa de várias formas, pela mensagem simples e cada detalhe significativo que traz. adorei repensar o filme com esse texto!