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📚 O filme que o Brasil não viu
Argentina 1985, de Santiago Mitre, fala firme com nossos futuros aqui
Olá!
O filme Argentina, 1985, é meu assunto de hoje. Um convite para falar de coisas que caminham fora do filme, nos caminhos entre história e ficção.
A edição da newsletter está um luxo, pois consegui conversar sobre o assunto com duas pessoas de referência na Argentina. A primeira é a escritora e editora Laura Ponce, que me ajudou muito na pesquisa deste texto.
A segunda é T. P. Mira-Echeverría, uma das principais vozes do new weird da América Latina, que escreveu ensaio sobre a estética do filme exclusivamente à Anacronista. Na próxima semana, publicarei esse segundo texto. Achei melhor dividir em duas partes, para degustarmos com calma tudo isso.
Não falei que estava um luxo?
Agradeço por prestigiar a Anacronista! É você, do outro lado da tela, que concede sentido às muitas trocas de mensagens e áudios, conversas necessárias e emotivas para colocar esta edição em pé.
Vamos lá, um abraço e boa leitura!
Um filme esperado
É noite, abri o site da Amazon, esqueço a senha, digito até acertar. Meu cachorro dormia a meus pés. Já tinha começado assistir o filme e parei. Agora estava decidida a ir até o fim. Por qual motivo parei na primeira vez? Sabia que iria chorar junto, ia anotar mil coisas, afinal, estou escrevendo um romance que se passa nesse mesmo ano. Assim, precisava me preparar.
Respirei fundo e apertei o play.
A trama vai aos poucos. Mal reconheci Ricardo Darín, no papel do promotor Julio César Strassera, procurando o galã antigo naqueles óculos pesados e cabelo fixo com gel, lembrando que envelhecíamos juntos. Ele nas telas; eu, no meu sofá.
O filme trata do famoso Julgamento das Juntas, condenando militares por violações dos direitos humanos durante a ditadura argentina, ainda na década de 1980.
Para construir a narrativa fílmica, o diretor Santiago Mitre, junto com o roteirista Mariano Llinás, escolheu contar a história a partir do promotor, já velho na carreira, Julio Strassera. Acompanhado de um então inexperiente assistente, Luis Moreno Ocampo, ambos são encarregados de juntar provas para condenar réus impensáveis: militares recém-saídos no poder.
Nunca mais, a frase para fechar o século
A escritora e editora argentina Laura Ponce contou-me que, na Argentina, a estreia do filme tornou-se importante principalmente para pessoas com menos de 30 anos, pois não tinham ideia do que aconteceu, do que significava o famoso “nunca mais”, fato hoje significativo diante do avanço de grupos negacionistas que questionam, por exemplo, o número das pessoas desaparecidas durante a época sombria.
Mesmo que ache o filme valioso, a escritora traz ainda um questionamento mais profundo: apesar de abrir a discussão, o enfoque narrativo recai nas "vítimas inocentes" da ditadura, como se houvesse "vítimas culpadas", pessoas que mereciam o que lhes aconteceu porque "devem ter aprontado" (uma frase comum em 1980). Essa falsa simetria foi usada para justificar a repressão por muitos anos, a chamada “Teoria dos Dois Demônios” — uma mentira criada para afirmar que militares não tiveram escolha a não ser responder a ataques de grupos subversivos, uma falsa justificativa usada no Brasil também.
O filme é didático: não há dúvidas sobre a crueldade usada na repressão. Entretanto, o roteiro privilegia uma narrativa de homens de terno na corte. Assim, o que estamos vendo é a ponta do iceberg de uma imensa mobilização social. Por exemplo, as Mães da Praça de Maio são mostradas sem muita profundidade. Também não explicam bem a façanha da Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), equipe liderada pelo escritor Ernesto Sábato, que fez o levantamento maciço dos crimes cometidos pela ditadura entre 1976 e 1983, um relatório recebido pelo Título "Nunca Mais".
No entanto, quem não gosta de uma boa história de tribunal?
Na próxima edição da Anacronista, trarei o ensaio de T. P. Mira-Echeverría sobre as escolhas estéticas do filme e seu impacto ao narrar essa imensa História.
O filme que o Brasil não assistiu
A parte dura de assistir a Argentina, 1985 é lembrar que acompanhamos um processo histórico que o Brasil não viu: ainda na década de 1980, a punição efetiva aos responsáveis pelos horrores da Ditadura Militar. Sem tirar o mérito das corajosas Comissões da Verdade brasileiras, montadas somente no século 21 com muito esforço, ou nem do movimento nacional Mães de Maio, pedindo justiça sobre os crimes de maio de 2006; se hoje vemos aqui a alegria das cores da Copa do Mundo com um tom dúbio, a gente sabe que também foi por falta de ações históricas emblemáticas como essa.
Em 1985, quarenta anos depois do julgamento de Nuremberg, estabeleceu-se, em Buenos Aires, um julgamento inédito no continente: instaurou-se um tribunal para escutar mais de 800 testemunhas, com a cobertura de 500 jornalistas. Além da questão jurídica envolvida, algo fundamental vinha à tona: a voz das vítimas.
Os depoimentos terríveis, com detalhes das violações de direitos, apontava para excessos de poder, bravatas e outras idiotices por parte de seus perpetradores, homens comuns investidos de uma crueldade fardada.
Quem é do Direito, sabe da falibilidade da prova testemunhal. A memória é algo instável e falho. É uma prova pouco técnica. Entretanto, se a prova testemunhal for imensa, acachapante, apontando para um sistema criminal organizado, não será possível negar os ocorridos. A partir dessa estratégia de defesa brilhante, montam-se as audiências. E escuta-se muito.
Quando o passado fala, o presente abre a boca
Se o julgamento de Nuremberg trouxe várias inovações no diálogo público (a tradução simultânea surgiu nessa época), o Julgamento das Juntas Militares aponta para a força da construção de uma narrativa coletiva.
Os depoimentos foram transmitidos por jornalistas e lidos ao redor do planeta. Uma das melhores cenas do filme é quando a mãe conservadora do promotor telefona ao filho, perguntando se ele está acompanhando. Afinal, os testemunhos viraram uma espécie de telenovela coletiva, na qual todo mundo queria opinar, saber, fofocar, discutir. Mais do que um julgado, essa falação construía uma narrativa mais profunda, de tudo o que não podia ser dito por anos.
Beatriz Sarlo, uma crítica argentina, diz algo interessante sobre a questão do passado falado no agora: “Não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele é convocado por um simples ato da vontade. O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente” (2005, p. 9).
Nas minhas inquietações, o fazer ficcional a partir disso tudo me interessa. Assim, é digno de nota que a distopia O conto da Aia, de Margaret Atwood, traga justamente uma história reconstituída em fitas cassete de uma vítima de ditadura. O livro da canadense é de 1985. Mesmo que Atwood não tenha acompanhado aquilo tudo na Argentina, a própria autora afirma sobre sua criação: “não inventei nada”. A ficção, com seus véus e distanciamentos, nos devolve nosso próprio mundo com outras perspectivas.
No escuro da minha sala, do alto-falante do computador, ouço o emocionante “nunca más”. Lembro daquela frase valiosa em cartazes, “ni olvido, ni perdón” (sem esquecimento ou clemência).
Será que conseguiremos fazer isso no Brasil de hoje? Julgar as vítimas do atual desgoverno? Não sei. Mas sei que cada pessoa começa a fazer algo de algum lugar. Até mesmo em tribunais. E somos em muita gente, com muitas capacidades.
Ao terminar o filme, olho meu cachorro dormindo. Ele também está velho, grisalho, cada vez mais amado. Fico nas possibilidades da vida, nas voltas da história. Na resistência, um fazer subterrâneo que pode começar nos invisíveis impérios da memória, onde muitas vezes nos aguarda os imensos poderes da ficção.
Referências
Nunca mais, livro com relatório redigido pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas - CONADEP [em espanhol].
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
Revista Próxima: Ficção científica latinoamericana
Laura Ponce é editora da Revista Proxima, sobre ficção científica latinoamericana.
As edições de 2009-2019 (44 edições) estão disponíveis para download gratuito.
Participo com um conto no anuário Nueva ciencia ficción latinoamericana, que pode ser adquirido aqui: revistaproxima.com. Se quiser conversar com a Laura Ponce para aquisição, ela disponibilizou gentilmente seu email: ayarmanot[@]yahoo.com.ar.
Continente de espectros, política e fantasmagoria
Conheci o André Araújo na Flip, que coisa boa! Já estava em meu rascunho sugerir esta edição da Espeluznante, relacionada ao tema, agora vai com gosto:
Como foi a Flip?
Não há espaço para tudo, assim, trouxe links de autoras de newsletters que conheci em Paraty (emoción!), contando justamente como foi a Festa Literária. Há 15 anos acompanho o evento, embora não tenha ido em todas desde então. Para mim, foi a melhor edição. O que a ausência de abraços não faz!
Bárbara Bom Angelo: Extra #11 — Queria ser grande na Flip
Carol Sandler: Vou te falar #73 — sobre a Flip, a literatura e a cura pelo espanto
Veganismo, da Cassimila e da Sarah: Inspiradíssimas: de Liniker a Miraildes! Mulheres e mais mulheres e Flip
Marina Borges: Paraty, Lillebonne, Araxá — um encontro entre Annie Ernaux, escritora, e Lázara Borges, minha avó
Paula Maria: O meio do caminho era de pedra
Priscila Calado: Claricianas #8
Agradeço
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Todo poder à alegria, ao desejo e à imaginação!
📚 O filme que o Brasil não viu
Foi bom ler teu texto porque estou adiando há séculos ver o filme. Desse final de semana não passa! A última vez que tive contato com a ditadura Argentina foi num curso sobre como aparecem na literatura os filhos dos perpetradores da ditadura. Vai ser bom voltar ao tema de uma outra perspectiva.
Adorei a edição!
eu também terminei o filme com o gosto amargo de que nunca faremos nada parecido :(
gostei MUITO dessa edição, um luxo de verdade <3