Machado de Assis e o leitor da caneta vermelha
A biografia, o gênero das paixões. Um achado num livro de sebo. Encontrinho de dezembro.
Olá, como você vai? Espero que bem!
Hoje comento sobre um achado espantoso dentro de um livro comprado num sebo: o que podemos encontrar dentro de uma biografia do querido Bruxo do Cosme Velho?
Deixo convites, um deles é para o próximo Encontrinho, na terça, 3/12, em que batemos um papo sobre os bastidores da newsletter [inscreva-se].
Com carinho,
Ana Rüsche
Os achados em livros são valiosos. Seja no texto ou nos espaços entre letras, é possível que encontremos algo raro e emocionante: a nós mesmos.
Machado de Assis e o leitor da caneta vermelha
Biografias e suas paixões
Aprendi a ler biografias com minha amiga Gisele Mirabai. Virginia Woolf também adorava esse tipo de leitura. Admito, são muito interessantes. A biografia exala paixões, mesmo que o biografado seja alguém odiável (afinal, sabemos que o ódio não é o contrário do amor; o contrário do amor é a indiferença).
As biografias nos vendem uma doce ilusão sobre conseguirmos entender melhor quem foram aquelas pessoas extraordinárias, afinal, há um pacto: aquela pessoa biografada precisa ser alguém incomum, senão qual a graça de conhecermos suas ideias, seus amores e suas manias?
O velho pacto da fofoca. Como não amar?
Quem fala numa biografia?
Lendo esse gênero, comecei a classificar as biografias pelo seu volume, pois há biografias nas quais o biógrafo fala num volume mais alto do que o biografado.
Um exemplo fácil desse primeiro tipo é a da Clarice Lispector, de Benjamin Moser (2009), em que até demoramos um pouco para entender que o biógrafo está tratando daquela velha conhecida nossa. Um exemplo do outro lado na classificação seria O mago, de Fernando Morais, sobre Paulo Coelho (2015), no qual mal observamos a dança do biógrafo para dar conta de tourear seu objeto. No meio, escolheria a biografia da Silvina Ocampo, escrita pela Mariana Enriquez (2014), na qual me parece uma investigação de nossa autora contemporânea sobre uma autora mais clássica argentina, embora ela desapareça por alguns momentos do texto.
Todos esses modelos são muito populares e não há melhores ou piores, pois depende muito de tudo, quem assina, quando foi produzido e por aí vai. De minha parte, prefiro o segundo tipo para ler. Mas se fosse escrever, sinto que talvez terminasse resvalando para o primeiro tipo.
Afinal, como se esconder? A biografia não é o suprassumo do que pensa justamente a biógrafa ou o biógrafo? Não seria a biografia o espelho mais vulgar de quem assina o livro? Um perigo.
Futricas e uma comprinha on-line
Como você pode ver até agora, gosto de ler biografias de escritores e escritoras, afinal, escrevo. E num dia de ócio, comecei a fuçar sobre as biografias do Machado de Assis. Há muitas! Das ultra detalhistas até as mais inconsequentes. Numa tarde de delicioso prazer culpado, fiquei futricando ebooks e baixando amostras. Recomendo! Há as mais tresloucadas hipóteses biográficas sobre nosso querido Joaquim Maria. O que mostra que, em matéria de fatos, sempre existe um grande espaço para interpretação e criatividade no mundo dos livros.
Resolvi então comprar uma, Machado de Assis: um gênio brasileiro, de Daniel Piza (2005). Parecia recente, embora já fosse uma jovem adulta de 20 anos. Famosas são as de Lúcia Miguel Pereira, uma das pioneiras de 1936; e os quatro volumes de Magalhães Júnior, de 1981, entre outras.
Nessa busca, descobri ainda que o Daniel Piza havia falecido, faleceu um pouco mais jovem do que sou agora, aos 41 anos. Fiquei triste. Esse fato me levou à decisão pelo livro. A biografia parecia ter uma cara mais jornalística, arejada e com fotos. Para meu lamento, estava esgotada, só havia edição impressa. Tudo bem. Comprei no Sebo Ponta de Lança, demorou uns dias para chegar e, quando chegou, demorei para abrir.
Prometo, querido leitor, querida leitora, toda a espera foi recompensada.
O leitor da caneta vermelha
Qual não foi minha surpresa, ao me sentar no sofá com a bela edição da Imprensa Oficial, com papel bem conservado, cheia das prometidas fotos de época e com guardas azuis, caiu em meu colo… um recorte de jornal. Dobrado ao meio.
Da máquina do tempo dos recortes de jornal, estendeu-se uma coluna da Veja, data de 22 de fevereiro de 2006: “Machado não merecia". No recorte, não havia pistas sobre quem assinava o texto, só uma torrente descendo a lenha no livro, apontando “os muitos erros da nova biografia do escritor". Ainda citou a coluna de Wilson Martins, no Jornal do Brasil, que fizera “um breve inventário de equívocos do livro". Achei curioso que alguém tenha juntado esse tipo de material jornalístico ao livro.
Folheio o volume e logo encontrei uma outra coisa ainda mais estranha, canetadas em tinta vermelha. Todas muito legíveis. Sim, o antigo dono do livro teve a pachorra de assinalar todos os supostos deslizes e equívocos de preparação que encontrou em inequívoca tinta vermelha.
Ao longo das linhas, encontro grifos, marcas de “!?", “por quê?”. As notas em vermelho são minuciosas. Na página 238, consta “ver p. 263”. Na página 262, “ver p. 238", mostrando um equívoco entre as datas envolvendo o processo editorial de Quincas Borba. Ainda constam debates literários, a exemplo do trecho escrito por Piza, “como Aurélia, de Senhora, figura suave que, no entanto, se revolta com o casamento imposto” (p. 147), que recebe a seguinte nota do leitor: “Ela compra um marido!".
Não parou aí. Mais adiante, encontrei outro recorte de revista, agora mais antigo, de 11 de janeiro de 2006, também da Veja. “Entre um Machado de Assis e outro", escreve Roberto Pompeu de Toledo. A diferença de datas entre os recortes aponta que nosso leitor acompanhou quase um mês de polêmica sobre a biografia.
Não há outros dados pessoais na encadernação. Nenhum ex-libris ou nome. Encontro a nota fiscal dentro das páginas. Uma compra de livro no dia 10 de janeiro de 2006 na Fnac, 42 reais enviado por Sedex.
Fico matutando como uma investigadora de fatos desimportantes.
Será que o livro foi adquirido para acompanhar a polêmica?
Por qual motivo tantas anotações e recortes?
Nas páginas do livro, as fotos coloridas também estão coladas, o que faz com minha biografia recém-adquirida tenha a aparência de um estranho álbum de figurinhas (talvez as fotos coloridas tenham sido impressas à parte e caberia ao leitor as colar? Não sei). A colagem foi feita com esmero, assim como as notas, sem rasuras, todas muito limpas. Uma crueldade da organização?
Tomando uma caneta imensa de chá com aquilo tudo no sofá, me enterneço. De todas as pessoas improváveis, aquele livro veio parar no meu colo. Justo comigo, para quem aquelas notas vermelhas se borram em suspiros. Justo comigo, a leitora antídoto, pois sempre estou do outro lado da página. Diante daquela violência e indignação da caneta firme, com sua suposta veracidade, só tenho vontade de dar um abraço compreensivo no falecido Daniel Piza. Quem nunca errou digitando loucamente um manuscrito? Por qual motivo não foi feita uma preparação decente? E ainda num livro com iconografia tão bem cuidada. Começo a encontrar desculpas imaginárias, “bom, ainda era na época de lançamento do Google", quase como se a caneta apontasse para mim. Como será que o autor se sentiu com tudo aquilo? Fechei o livro bonito com uma sensação difícil.
Demorei uns bons meses para vir escrever para você essa história. Apesar de tudo, olhando mais uma vez, me parece uma história bem íntima. Não há nada tão transparente quanto o odiar. Quem foi aquela pessoa tão meticulosa? Com opiniões pouco técnicas e uma índole tão fácil de ofender. Uma história íntima guardada entre páginas por quase 20 anos para se desembrulhar no meu colo e agora chegar a você, ao outro lado da tela.
Uma biografia na qual o volume da caneta do leitor ou da leitora se sobressai, num solo ensurdecedor, capaz de obliterar até a figura majestosa de Joaquim Maria Machado de Assis.
Havia fúria ali. Sublinhada em vermelho.
A biografia, esse gênero da paixão.
Referências
ENRIQUEZ, Mariana. A irmã menor: um retrato de Silvina Ocampo (Trad. Mariana Sanchez). Belo Horizonte: Relicário, 2022.
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis (4 volumes). Rio de Janeiro: Record, 2008.
MORAIS, Fernando. O Mago: a incrível história de Paulo Coelho. Curitiba: Nova Página, 2015.
MOSER, Benjamin. Clarice, (Trad. José Geraldo Couto). São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Brasília: Senado Federal, 2017.
PIZA, Daniel. Machado de Assis: um gênio brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005.
Convites
[on-line] Encontrinho
3 de dezembro, terça, das 18h às 19h
Tema: A geologia do conto: da encomenda inicial à tradução e edição.
On-line, aberto a quem quiser, um encontro para conversarmos sobre os bastidores da newsletter. Vamos sortear um exemplar de Depois do fim: conversas sobre literatura e Antropoceno, org. Fabiane Secches, entre quem incentiva a Anacronista via ApoiaSe.
Inscreva-se: https://anarusche.kit.com/encontrinho
[on-line] Filamentos: 7 de dezembro
Vamos conversar sobre Escute as feras, de Nastassja Martin (34), trad. Camila Boldrini e Daniel Lühmann; e Um estranho tão familiar: Teorias e reflexões sobre o estranhamento na ficção, de George Amaral (Bandeirola).
Para participar, basta apoiar o projeto no Catarse: https://www.catarse.me/filamentos2024
Duas campanhas para você conhecer
Fortunato Poeira, livro de Anna Martino
Um romance que transcende a ficção científica para desvendar a memória, a humanidade e as disputas invisíveis de um homem comum em um futuro possível. Mais do que um livro sobre um futuro imaginário, Fortunato Poeira é um romance sobre um futuro possível que carrega as angústias e os anseios do presente. E, acima de tudo, uma boa história contada em um texto ágil, esperto e bem-humorado.
Editora Cachalote. Conheça a Benfeitoria aqui.
Góticas brasileiras
Uma coletânea dedicada a reunir contos góticos e de terror de escritoras brasileiras dos séculos XIX e XX. Com organização de Ana Paula Araújo dos Santos e Ismael Chaves. Editora O Grifo. O volume já foi financiado e colaborarei com o prefácio. Para conhecer: https://www.catarse.me/goticas.
Sobre esta edição
Para produzir esta newsletter, foram despendidas somente três horas, assim, se houver erros de preparação e revisão, você já sabe.
Também foi necessária a aquisição da mencionada biografia do Machado, feita em junho, no valor de 48 reais pelo livro e 21 de frete.
Assim, vim agradecer a você que apoia a newsletter e faz com que essas edições ganhem corpo. Minha ideia é manter esses textos abertos, sem inserção de paywall. 🧡
Estou quase batendo a meta de 40%. Janeiro é o pior dos meses para quem é freelancer, assim, ficaria muito feliz se batesse a meta no final do ano.
Venha! https://apoia.se/anacronista
Muito obrigada!
Se gostou da edição:
🧡 Deixe uma indicação de biografia! Se for sobre escritores, melhor.
🧡 Se anime para apoiar a Anacronista: https://apoia.se/anacronista
🧡 Não deixe de encaminhar a edição para pessoas legais!
Canais
Telegram: https://t.me/criatividade
Conheça meu último livro: Ferozes melancolias: o amor, a viagem e a escrita.
Se ler é um engenho mágico, capaz de parar o tempo, obrigada por resistir diante da máquina do mundo de moer os minutos e estarmos aqui, respirando lado a lado. O desejo, a entrega e a coragem. A leitura, essa magia antiga.
Adorei a dica! Ainda não tinha ouvido falar ❤️ Muito obrigada
Deixo a dica de Aqui vai meu coração, cartas de Tarsila Amaral ao seu último marido, Luís Martins, selecionada por Ana Luísa Martins, filha de Luís.
A vida de Tarsila se mostra de forma impressionante através das cartas dirigidas ao marido, 16 anos mais jovem, compiladas pela filha deste -- fruto do relacionamento com a sobrinha de Tarsila.
Tarsila resplandece nessa correspondência, com fatos de enternecer e de cair o queixo, como detalhes do relacionamento da pintora com Osvald de Andrade que só poderiam sair de uma poderosa e tristíssima história familiar.
Impressionante. Recomendo.
Bjs. Sandra