A paixão da sorte pela coragem, a história por trás da história
Construir um conto. Uma lição de Julio Cortázar e Ted Chiang. Uma narrativa minha, “Coração da aurora". Convites para Campinas e Porto Alegre.
Olá!
Esta é mais uma edição da Anacronista. O assunto é a gênese de um conto e a violência na adolescência.
Em novembro, estarei em Porto Alegre e Campinas. Se puder vir em algum evento, não deixe de me dar um abraço, fonte de energia para essa newsletter.
Meu último livro, o Ferozes melancolias: o amor, a viagem e a escrita, foi destaque no jornal Rascunho. Conheça o livro aqui.
Com carinho,
Ana Rüsche
Diante da máquina do mundo de moer minutos, a leitura é um ótimo antídoto.
Um engenho mágico capaz de parar o tempo.
Obrigada por parar, procrastinar e viajar comigo.
A paixão da sorte pela coragem
Tudo o que a ciência conhece com exatidão sobre furacões é que são completamente imprevisíveis. A mesma afirmação é válida para o processo criativo, varrido pelo Imponderável.
Sempre me fascinou a seguinte pergunta sobre a criatividade: qual é a história por trás da história? Algo que é notório, o processo criativo não possui relação necessária com o que ficou registrado na obra final. Como se fosse um vento que bagunçasse os cabelos e só largasse um emaranhado. Artistas, muitas vezes, conseguem se desprender por completo justamente dessa ignição inicial que originou aquela força giratória aérea, onde tudo se volta uma vez mais ao centro, em alguns casos com uma estranha energia própria de um furacão.
Chutaria dizer ainda que, em alguns casos, esse se desprender do mote inicial é muito sábio, soltar a mão do processo em direção ao Imponderável, até que o processo cumpra sua própria selvageria imprevisível no rastro de papel.
Entretanto, nem tudo é acaso. Uma das frases tatuadas por dentro de minhas veias é:
“A sorte admira a coragem.”
Essa é minha própria versão do fortune favors the bold, que tiram do Alexandre Magno (que obviamente não falou isso em inglês lá na Macedônia em 300 antes de Cristo); também ecoando algo que o Demócrito supostamente teria dito em grego, também com a mesma antiguidade: a coragem é o início da ação, mas a sorte decide como tudo termina.
Daí não adianta nada parar na pasmaceira e aguardar a mágica acontecer. É preciso de certo engenho para criar a centelha inicial, capaz de esquentar as águas dos mares mentais para criar e soltar esse furacão sem controle.
Como criar a ignição da centelha inicial? Talvez seja uma das poucas pistas que temos para investigarmos os rastros da história por trás da história.
A engenharia de largar furacões no papel
Ted Chiang é um dos maiores escritores de narrativas curtas em atuação. Como escreve contos, seu coeficiente de “prêmios por palavra” é altíssimo, tendo ganhado quase todos de sua categoria, a ficção científica — um feito para um escritor estadunidense, considerando que tanto nos EUA quanto na China se leva bastante a sério essa espécie de literatura (afinal, quem detém o imaginário sobre o futuro influencia da política à tecnologia). Nascido numa pequena cidade no estado de Nova York em 1967, Chiang é filho de pais chineses e formado em ciência da computação.
Tive a felicidade de escutar esse meu herói pessoal algumas vezes, quando estive na conferência regional de ficção científica de Boston, a Boskone. Com uma generosidade e simplicidade comuns às pessoas grandiosas, Ted Chiang explicou para uma plateia atenta como construiu a fricção necessária para provocar a ignição a uma de suas histórias mais conhecidas, História da sua vida (1998), uma narrativa com 17 mil palavras, classificada entre novela e conto. Você talvez a conheça o enredo, pois foi adaptada ao filme Arrival: a chegada, por Denis Villeneuve (2016), indicado a oito Oscars.
Vou contar como me lembro da fala. Com uma perspectiva vinda das ciências duras, nosso engenheiro das palavras montou o seguinte diagrama: matutou por dias sobre a pior coisa que poderia acontecer com alguém. Há muitas possibilidades, não vou me alongar, pois a História do Brasil e duas guerras mundiais geraram horrores impensáveis. Mas nosso escritor ficou ali matutando, observando o caleidoscópio das experiências dolorosas domésticas mais comuns. Qual situação seria essa?
Ao construir o dispositivo para gerar a ignição de sua fagulha inicial, Chiang procurou escolher algo essencial às narrativas curtas, uma energia narrativa poderosa. Nas narrativas longas, tudo bem demorar um tempo na construção do drama. Agora, em poucas páginas, as coisas possuem urgência e precisam de um motivo forte para gerar energia suficiente para soltar o pião do processo criativo girando na página.
Não deixa de ser interessante perceber como as ideias de Ted Chiang soam como a velha lição de Julio Cortázar de 1960, quando o argentino sugere que o conto seria essa luta de boxe vencida por nocaute e não lentamente por pontos:
“É verdade, na medida em que o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto que um bom conto é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases. Não se entenda isto demasiado literalmente, porque o bom contista é um boxeador muito astuto, e muitos dos seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na realidade, estão minando já as resistências mais sólidas do adversário.” (CORTÁZAR, 1993, p. 152)
Ted Chiang, nosso cientista da computação e escritor, então escolheu focar numa dor doméstica dura: uma mãe perde a filha. Foi essa ignição, com uma grande força dramática, que criou o furacão que o arrastaria no processo criativo, criando uma obsessão tal que o escritor passou por volta de cinco anos estudando linguística — a grande coragem que permite uma protagonista crível, uma docente da área.
Ainda no rastro dos ventos, o escritor foi engolfado por lições de física, incluindo uma aplicação do Fermat; alienígenas heptápodes com pele de veludo com novas linguagens; militares, paranóias de invasão e sabe-se lá o que quê mais. Mas se formos observar bem, no centro do furacão, onde tudo é calmaria e ameaça, está ali a coragem de se deixar aprofundar numa dor (alheia e fictícia) e numa ciência alienígena ao escritor (a linguística), a história por trás da história. A fortuna se encarregou de varrer o resto para fazer a obra voar e brilhar.
O centro de um conto sombrio
Tudo isso para te contar a seguinte história: quando recebi o convite da Fabiane Secches e da Socorro Acioli para estar numa antologia de contos ao lado de Lygia Fagundes Telles, minhas pernas bambearam e entendi que precisaria parar e usar muito bem minha cabeça.
E não me acovardar. Afinal, sem coragem, impossível fazer com que a sorte se apaixone por nós ao menos um pouquinho. Daí procurei seguir as ideias de Ted Chiang. Fiquei pensando nisso, qual seria a força criativa possível para erguer um pequeno vendaval?
Como seria um livro sobre histórias sombrias escrito por mulheres e estava com medo, o início de tudo foi marcado por pesadelos, esse convite pouco gentil do Imponderável em jogar em nossa cara o mundo. Você quer algo sombrio? Aí vai. Sonhei com imagens violentas muitas noites, parte de minha depressão de base voltou e tive sobressaltos durante o dia. Depois de acolher esse tipo de presente do inconsciente, fiquei matutando, lembrando da lição de Chiang. Qual imagem teria força suficiente?
Decidi posicionar a protagonista como uma garota. A adolescência é, por excelência, um dos momentos-chave de virada de tudo — a metamorfose corporal em poucos anos, a inocência misturada à ameaça da experiência, a vulnerabilidade aliada à energia de viver. Inclusive, ali, escrevendo aquele conto diante da figura da Lygia Fagundes Telles, me sentia muito assim, inexperiente. Decidida a adolescência e os anos que gostaria de retratar, uma “Bildungskurzgeschichte" (um conto sobre os anos de formação de alguém, se é que não é paradoxal tratar isso em poucas páginas), carreguei junto o abandono e a violência.
Na minha ignição, constituí uma violência comum no Brasil, uma filha abandonada pelo pai. E depois violentada por alguém próximo.
No olho do furacão, onde há silêncios terríveis e ameaças, está um fato avassalador da realidade: segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), o lugar mais inseguro para as mulheres é dentro da própria casa:
“Casa ainda é o local mais perigoso para mulheres. Segundo a pesquisa Visível e Invisível – A Vitimização de Mulheres no Brasil, a própria casa ainda é o lugar onde as mulheres mais sofrem violência. 42% das entrevistadas apontam a casa como local onde aconteceu a agressão, seguida de 29% que alegaram ter sofrido violência na rua.” Dossiê do Instituto Patrícia Galvão
Além disso, mais de 75% das agressões são cometidas por conhecidos da vítima. Ou seja, a maior violência parte do lugar onde deveríamos nos sentir seguras e por quem está perto. Dessa forma, é esse o olho terrível do conto "Coração da aurora".
Claro que o furacão criativo me arrastou a lugares que nem imaginava. Na história, crio marés lavando casas, num futuro próximo no qual o nível dos mares já subiu; tecnologias comunicacionais futuras, poluição profunda, uma pulsação do mundo, duas histórias de padres e uma monstruosidade para habitarmos.
Na apresentação ao livro O dia escuro, escrito por uma das organizadoras, Fabiane Secches resume bem a proposta da antologia, agora erguida entre vinte vozes de mulheres, ganhando finalmente o papel nesse final de ano: “Essas escritoras deram materialidade ao centro mais escuro não apenas das noites, mas até mesmo dos dias". O livro é muito emocionante (talvez tenha ajudado a recolher material para meus pesadelos futuros?), com uma profundidade, considerando a reunião de vozes distintas, com estéticas diferentes.
O conto agora silencioso no papel, ao final de tudo, começa assim:
“Era no tempo da impermanência. Naquela vila, diziam que o mar comia demais a terra ali, avançava na faixa de casas e não compensava botar dinheiro num lugar que logo estaria embaixo d’água. A menina, uma garota sardenta miúda, não conhecia o próprio pai, e essa era a preocupação mais significativa da vida daqueles treze anos, embora fosse muito comum não ter pai naquele lugarejo, em que conexões filamentosas nunca foram sequer instaladas e a contaminação alta era uma realidade. Os outros seis irmãos, todos homens, ignoravam a ausência paterna com chutes e socos. A garota terminou por aprender o mesmo, moldando-se mais brava do que quieta, insistindo em suas interrogações.”
Se a história funcionou do outro lado da página, ainda não sabemos bem. O largar ao mundo é duro, uma parte nada simples do processo.
Para manter a sorte apaixonada, a coragem todos os dias precisa ser construída.
Ora como engenho ora como um senso da alegria.
Referências
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópios. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1993.
CHIANG, Ted. História da sua vida e outros contos. Trad. Edmundo Barreiros. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
O dia escuro: contos inquietantes de autoras brasileiras
Organizado por Fabiane Secches e Socorro Acioli, o livro traz vários acontecimentos estranhos. Uma mulher acha um dedo na praia. Um homem em situação de rua agoniza na calçada. Uma menina tem certeza de que sua mãe foi trocada por outra. Um herdeiro escravocrata enlouquece com espíritos do passado. Uma criança brinca com a amiga sem saber que já morreu.
"Será que é possível escrever um conto de terror quando a realidade parece um conto de terror?", é o que pergunta a narradora de Carola Saavedra em um dos vinte textos reunidos nesta coletânea de histórias sombrias.
Com contos de Amara Moira, Ana Rüsche, Andréa del Fuego, Carola Saavedra, Cidinha da Silva, Dia Nobre, Eliana Alves Cruz, Fabiane Guimarães, Flavia Stefani, Jarid Arraes, Laís Romero, Lygia Fagundes Telles, Marcela Dantés, Maria Valéria Rezende, Mariana Salomão Carrara, Micheliny Verunschk, Natalia Borges Polesso, Natércia Pontes, Socorro Acioli, Trudruá Dorrico.
Lançamento da Companhia das Letras
+ Matéria no Caderno Pensar, no Estado de Minas: Escritoras contam histórias de um país assustador
Encontrinho da Anacronista
Para quem quiser bater papo e conhecer os bastidores da newsletter, venha a esse encontro on-line, aberto a quem quiser.
3 de dezembro, terça, das 18h às 19h
Tema: A geologia da narrativa: da encomenda inicial à tradução e edição
Vamos sortear um exemplar de “Depois do fim: conversas sobre literatura e Antropoceno”, org. Fabiane Secches, entre quem incentiva a Anacronista via ApoiaSe.
Convites
Porto Alegre, 21 de novembro | Cultura no Antropoceno
A Casa de Cultura Mário Quintana apresenta a série "Cultura no Antropoceno". Com uma programação longa e significativa. Participo da mesa "Uma proliferação de mundos", ao lado de Micheliny Verunschk e Taiasmin Ohnmacht, com a mediação de Brenda Vidal. 21/11, quinta, 19h, presencial.
Campinas, 30 de novembro | Elas publicam
Estarei com Amara Moira e Maria Carolina Casati para conversar sobre Literatura, feminismo e decolialidades no Elas publicam: VI Encontro de Mulheres do Mercado Editorial. 30/11, sábado, 13h30.
[on-line] Filamentos: 7 de dezembro
Vamos conversar sobre Escute as feras, de Nastassja Martin (34), trad. Camila Boldrini e Daniel Lühmann; e Um estranho tão familiar: Teorias e reflexões sobre o estranhamento na ficção, de George Amaral (Bandeirola). 9/12, sábado, 11h.
Inscrições: https://www.catarse.me/filamentos2024
[gravado] Paisagens, bichos e plantas
Participei do IV Festival Mário de Andrade, em São Paulo, conduzindo uma conversa com a Maria Esther Maciel e Micheliny Verunschk sobre A agência literária da natureza: paisagens, bichos e plantas. Aqui vai a gravação da mesa.
Assíncronas
Li muitas newsletters impactantes, pois andei jururu com as eleições nos EUA (geralmente escrevo menos e leio mais nesses períodos).
Influenciada pela Carol Bensimon, #Nevoeiro 45, peguei para ler Por que o budismo funciona?, de Robert Wright. Voltei a meditar 10 minutos por dia.
A palavra do budismo sempre nos leva a nos sentarmos no Sofá da Surina.
Sempre indico, mas a Vanessa Guedes andou se superando nas últimas edições. Vale conferir a “Dissolver e coagular".
Conheça a Circulando, a newsletter da livraria Circulares (mesmo que você não more em Brasília, muito bom o apanhado). Colaborei com a edição de outubro.
Sobre esta edição
Para produzir esta newsletter foram necessários três rascunhos, pois não sabia muito bem por onde começar. Também alguns minutos de áudios, perturbando amigos com inseguranças e catastrofismos baratos. Fiz algumas horas de estudo, em especial de Abraço, de José Luís Peixoto, um livro de crônicas, queria entender como algumas composições funcionavam. A edição foi mais rápida, mas você sabe que leva um tempo também, por volta de 1h30.
Assim, agradeço a todo mundo que apoia a newsletter. Minha ideia é manter esses textos abertos, sem inserção de paywall. 🧡
Estou quase batendo a meta de 40%, quem sabe não consigo até o final do ano?
Muito obrigada!
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🧡 Encaminhe a edição para pessoas legais! Vale postar stories do Instagram, repassar o email, restacar no app do Substack, enviar por WhatsApp e o que mais achar útil.
Canais
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Instagram: @anarusche
Obrigada por estarmos aqui, nesse lugar sem tempo, respirando lado a lado.
A leitura, essa magia antiga.
Sou fã do Ted Chiang e da Ana Rusche 😌😊
Quando eu era criança, para desespero de meus pais e dos despertadores e rádio-relógios, eu era fascinado em desmontar as coisas pra ver como eram por dentro, como funcionavam. Obrigado por abrir esta tampa e mostrar pra gente a anatomia interna dos furacões!