A terceira margem do lago
Quando o vento parou. O silêncio na construção do sublime. Os androides de Philip K. Dick, as sereias de Odisseu e a Lagoa Santa, em Minas Gerais.
Olá!
Antes de tudo, duas notícias maravilhosas:
Meu livro de ensaios, "Ferozes melancolias", sairá em agosto pela editora Rua do Sabão! Com lançamentos em Brasília e São Paulo, em breve, trarei os detalhes. O livro aborda a escrita, o amor e a viagem.
Vou para a China novamente! Agora para participar do International Youth Poetry Festival in China, organizado pela Associação Chinesa de Escritores. Em julho, viajarei com Cida Pedrosa, Júlia de Carvalho Hansen, Lubi Prates, Luiza Romão, Rodrigo Luiz Vianna e Thiago Ponce de Moraes para Hangzhou e Pequim. Serão 80 poetas ao todo! Claro que escreverei depois sobre essa viagem.
Hoje temos a segunda parte do ensaio desta marinheira de nenhuma viagem, ainda sobre minhas elucubrações de tentar domar um veleiro no Lago Paranoá.
Agora, conto com um argumento de autoridade, pois tirei a Carteira de Habilitação de Arrais! Depois de uma prova teórica duríssima, sem brincadeira; e as aulas práticas, consegui passar (desculpa, mas vou ter que escrever que arraisei).
E agradeço! Nada disso seria possível sem você do outro lado da margem do papel. Vamos lá, procrastinemos com classe e com bons ventos.
Com carinho,
Ana Rüsche
Nota: os intestinos do servidor do Substack estiveram lentos e ontem não entregaram o e-mail. Desculpe se você está recebendo em duplicidade.
A terceira margem do lago
Os temas das últimas edições da Anacronista foram “o som na página do papel” e “vocabulário náutico”. Costurando essas conversas de forma inusual, fiquei remoendo uma experiência: a de parar no meio do lago, sem vento algum.
Quando um imenso silêncio nos envelopa. Nem a vela paneja.
Na literatura, o silêncio é utilizado, muitas vezes, para construção do belo e do sublime. A quietude diante da floresta. A calmaria diante do Oceano. Um artifício para mostrar a escala humana no contraste com a imensidão do planeta (afinal, nada menos silencioso do que ondas quebrando ou as muitas espécies numa floresta). No pólo oposto, para representar o mundo tecnológico, em alguns casos, como veremos, temos o ruído.
É evidente que cada artista faz o que quer e mudar essas polaridades está dentro do jogo criativo, mas escolhi esses contrastes para começar a tecer meu argumento, um cabo enrolado para aportamos numa outra margem.
Faustão do mundo apocalíptico
Em Androides sonham com ovelhas elétricas, o livro clássico do estadunidense Philip K. Dick (1968), há algo que não foi transportado para o filme Blade Runner, o cult de Ridley Scott (1982): o apresentador de talk-show.
No livro, existe uma personagem que nunca para de falar, um apresentador de TV, o Buster Amigão ou Buster Gente-Fina, uma espécie de Faustão ou Luciano Huck do mundo apocalíptico, que nunca cessa sua transmissão verborrágica. Na lógica do romance, em que há humanos e androides, fica sugerido que o famoso apresentador pode ser da segunda categoria.
Essa transmissão ininterrupta é o ruído de fundo. Consta na maioria das cenas. O ruído de fundo liga tudo, considerando que muitas das cenas estão sintonizadas no programa, criando um amálgama entre personagens em diferentes espaços. Ainda, as personagens parecem deixar o programa sintonizado para evitarem ouvir o que acontece fora.
O silêncio. O mundo desolado no qual a catástrofe cai suave em flocos radioativos, gradualmente soterrando macia todos os seres viventes do planeta.
Movida a fones de ouvido
Lembrar desse artifício literário do Philip K. Dick me leva a confessar um choque causado pela leitura de um livro: Ypabuçu, a vida nas lagoas, do zoólogo Marcos Rodrigues (Unicamp, 2022).
Essa bela obra de divulgação científica narra os passeios diários do autor ao redor da Lagoa Santa, no município homônimo em Minas Gerais, com digressões maravilhosas sobre a vida ao redor do corpo d’água. O início do livro:
"Há cerca de 20 anos, estabeleci residência em Lagoa Santa, uma pequena cidade 30 quilômetros ao norte da capital do estado de Minas Gerais, Belo Horizonte. Na época, eu não conhecia nada sobre a região, mas fiquei encantado com as cores rosa e púrpura das nuvens crepusculares de uma tarde no final de fevereiro e com a lagoa que dá nome à cidade: Santa." (Rodrigues, 2022, p. 15)
Com esse olhar zoólogo, o autor compreende os cantos dos pássaros e os ruídos do vento e reclama muito das pessoas caminhando ou correndo com os ouvidos enterrados em fones de ouvido. Rodrigues frisa como esse povo perde tudo, o barulho das árvores, da água, dos insetos.
Meu choque? Eu caminho muito, é uma das minhas principais formas de locomoção. Entretanto sou movida a fones de ouvido, sempre enterrados nas orelhas. Como se precisasse de um Buster Amigão com esteroides, ou seja, o algoritmo do Spotify, uma companhia sintética que me conhece melhor meus gostos, inclusive os condenáveis, do que muita gente de carne e osso.
O vício nos fones pra quê? Não ouvir o mundo ao meu redor? Os meus pensamentos? Talvez.
Quando o vento parou
Toda essa digressão para voltarmos à cena inicial, ali no meio do imenso lago Paranoá, onde andei velejando, e tratar da construção do sublime. Afinal, quando se está ali no meio de tudo sobre as águas, num veleirinho no meio do lago Paranoá, o vento pode parar. Nem a lona da vela faz ruídos.
O problema é que, num veleiro sem vento, também perdemos a direção. Tudo na navegação deixa de ter importância, cabos, velas, leme. A compreensão da expressão “ficar à deriva". O silêncio imperioso nos cobre, muitas vezes acompanhado de um manto de céu violáceo e alaranjado.
Olha, muito já se escreveu sobre o Odisseu escutando as sereias. No canto 12 da Odisseia, narra-se que a exuberante melodia das sereias condenava à morte qualquer pessoa que navegasse ali por perto, pois o som tragava marinheiros enlouquecidos ao fundo do mar. Odisseu, nosso herói espertalhão, não queria perder esse concerto infernal, assim, teve a genial ideia de tapar os ouvidos dos remadores e se amarrou no mastro do barco. Dessa forma, escutaria tudo e o barco não naufragaria. Parece que deu certo, pois Odisseu é conhecido por sua astúcia.
Refletindo sobre esse episódio antigo, fiquei imaginando se o canto das sereias não seria justamente a voz do silêncio.
Que nos devolve o mundo.
Algo tão profundo que poderia nos enlouquecer.
No meio do lago, quando o silêncio me engolfa em tons de laranja e violeta, tudo parece terrível e maravilhoso. Sem vento, não há o que fazer. Nem destino há. Ficar à deriva das benesses divinas e aos caprichos do mundo, produz uma quietude imensa. Passa até um sopro de morte. O leme deixa de fazer sentido. A vela não paneja mais. Os cabos falecem inertes. Os desejos apagam a própria direção. Tudo para, a despeito do que você possa querer.
No velerinho, os fones de ouvido nunca estão comigo. E qualquer caminho deixa de fazer sentido, pois nada se move. Se na cena mitológica, Odisseu espertão usou da sua astúcia para escutar o inescutável, eu sou bem mais atrapalhada com isso tudo.
Sozinha ali, simplesmente ouço.
Na terceira margem do lago, desponta aquele algo que nos agiganta por nos sublinhar nossa insignificância.
O silêncio, o arrimo do céu.
Paisagens sonoras
Há muito tempo atrás, a artista Renata Roman, me deu um maravilhoso presente de aniversário: captou uma paisagem sonora. Com o projeto Paisagens Poéticas, gravou os sons de um passeio nosso no Parque Villa-Lobos, em São Paulo — um parque com nome de compositor. Isso foi em 2012 e a faixa saiu do ar. Mas encontrei outras faixas da cidade de São Paulo a. É belíssimo, pode se perder por lá.
Vale ressaltar o paradoxo: reparar nos sons que nos tocam e talvez escutar esse ruído, é uma das formas de escutarmos o silêncio.
Vocabulário náutico, ainda
Recebi várias mensagens legais por conta da última edição sobre vocabulário náutico! Seguem três complementos.
Ainda sobre corda e cabo: rememorando, não se pode falar nunca "corda". Se pronunciar "cordinha", vai andar na prancha igual aos condenados pelo Capitão Gancho. É tudo "cabo". Na apostila em que estava estudando para a prova do Arrais, constava que, nas embarcações, só existem duas cordas: "a corda do sino e a corda do relógio". Também recebi um e-mail dizendo que "corda" foi usada para enforcamentos, daí a repulsa. Se não é verdade, a gente incorpora esse dado como um pensamento literário.
O hélice: por favor, ajuste o gênero masculino dessa parte propulsora.
Âncora: nas partes da âncora, descobri que ela tem pata e também unha. É quase um bicho mitológico não-humano.
Cursos de Escrita
Estão abertas as inscrições para meus cursos on-line semestrais!
Ateliês para exercitar a escrita de não ficção e narrativas de agosto a dezembro. Venha tirar as ideias da cabeça e das gavetas para as consolidar no papel.
On-line: Festival Filamentos, livros sobre crise climática
No sábado, 13 de julho, acontece o Festival Filamentos, venha! Vai ser muito inspirador.
10h: O Antropoceno narrado para crianças e jovens. Com Alice Stock, escritora e tradutora; Maria Carolina Casati, pesquisadora e idealizadora do canal Encruzilinhas; e Mariana Brecht, roteirista, escritora e designer de narrativas de jogo.
11h30h: O Antropoceno no mundo dos livros, o tema é pensar a ecologia a partir da perspectiva editorial. Participam Eduardo Socha, da editora Quina; e Sandra Abrano, da editora Bandeirola, com minha mediação.
A participação é gratuita e aberta. Inscrições via Sympla.
🌿 Filamentos: leituras do segundo semestre: Para participar, basta apoiar o projeto no Catarse.
📚 São Paulo: livraria Gato Sem Rabo
Na sexta, 12 de junho, 19h, estarei com as maravilhosas Maria Carolina Casati (Encruzilinhas) e Vanessa Guedes (Segredos em Órbita) no ciclo Lua em Foice.
Vamos conversar sobre mulheres escrevendo coisas sinistras e assustadoras, a partir do livro de contos Voladoras, da equatoriana Mónica Ojeda (trad. Silvia Massimini Felix, ed. Autêntica), que apresenta um imaginário sobre o inquietante, o feminino e a violência. Para participar, não é preciso ter lido a obra antes.
O ciclo foi inspirado na obra Lua em Foice, uma antologia de autoras italianas de ficção gótica, insólita e de horror, organizada por Júlia Lobão e Karine Simoni, ed. Clepsidra e Ex Machina.
Sexta, 12/7, 19h. Livraria Gato Sem Rabo. R. Amaral Gurgel, 352, Vila Buarque, São Paulo (SP). Gratuito.
Aulão de escrita criativa
No dia 30 de julho às 19h, Rê Corrêa e eu vamos dar aulão de escrita criativa via Zoom. Anote a data e, em breve, divulgaremos mais informações!
Sobre esta edição
Para produzir esta newsletter foram necessárias só duas horas de redação, pois já tinha feito parte do rascunho antes. Foram necessários ainda 2 copos d'água e 8 horas de estudo teórico de regras náuticas, incluindo uma prova teórica.
Com os apoios recebidos, consegui oferecer mais um Encontrinho da Anacronista — a transmissão foi feita da livraria Circulares, em Brasília, e conversamos sobre inteligências artificiais na literatura e na vida real. Ainda marcarei o calendário dos encontrinhos do segundo semestre, sim?
O sorteio para apoiadores foi de um exemplar de Depois do fim — conversas sobre Literatura e Antropoceno (org. Fabiane Secches, ed. Instante), no qual tenho um ensaio publicado.
Quem apoia a Anacronista, em algumas faixas, recebeu notícias dos bastidores da newsletter, uma mistura de alegria e caos. Considere também apoiar esse trabalho! 🧡
Muito obrigada!
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à imaginação!
Amei saber do Ypabuçu! Fiz meu TCC, hahaha, sobre a Lagoa Santa, e virei noites em uma canoa, remando pela lagoa a coletar amostras de água... Long ago, então, o baita silêncio ocupando o céu escuro, as poucas luzes da cidade amarelinhas como estrelinhas caindo devagar, e nossos remos fazendo um corte lento pra não machucar as ninféias florindo. Um ano, todo mês, uma noite e um dia a cada mês: do ruído à luz do sol para a noite bruxeleando as águas ❤️
Parabéns porta toda essa energia positiva.. Chega para nós e nós inspira. FELIZ VIAGEM