A leitura faz a escrita: bodes, patos, barbas e monges
Agradecimentos. O dilema pato-coelho. Barbas e filósofos. A sã loucura. Sem você do outro lado da tela, nada seria possível.
Olá,
Está na caixa mais uma edição da Anacronista, feita a partir do mote de Grant Snider, da Incidental Comics, que fez desenhos lindos de agradecimento a seus leitores.
Como não sei desenhar, trago uma pesquisa um tanto tresloucada para chegar à conclusão: a leitura faz a escrita.
Numa típica edição anacrônica, que pode ser lida em qualquer momento do ano, ancorei o lero-lero em muitas referências, cuidadosamente pesquisadas, para singrarmos os mares de mistérios sobre coisas que absolutamente não sei. Prometo patinhos, filósofos, bodes, monges e escritores.
Venha procrastinar comigo e afundar neste buraco de coelho, pois aqui nunca estamos atrasados para nada. Nesta dimensão, temos todo o tempo do mundo.
Com a calma e o amor da saudável loucura,
Ana Rüsche
A leitura faz a escrita
Desde pequena fico fascinada com a frase “O hábito faz o monge". Me parece um daqueles jogos de imagem, em que você não sabe se vê um pato ou um coelho, por mais que preste muita atenção.
Seria o hábito uma peça de roupa comprida e sóbria?
Ou seria o hábito a repetição da vida monástica?
Venha entrar num buraco fundo de animal orelhudo numa digressão sem fim sobre essas perguntas para não sairmos com respostas.
O dilema coelho-pato
Fui atrás de mais subsídios para explicar essa brincadeira antiga, das coisas que são duas-coisas-ao-mesmo-tempo.
Um dos inícios do papo é a ilustração anônima "Kaninchen und Ente", “coelho e pato", publicada num jornal de humor, Fliegende Blätter, em 1892 (seria uma ilustração alucinada do Chat GPT fazendo uma viagem no tempo ao passado? Nunca saberemos). Ficou célebre, pois além de muito divertida, mereceu até menção do filósofo Ludwig Wittgenstein.
Segue a famosa imagem:
O mistério do coelho-pato seguiu encantando gerações. Como sou muito curiosa, fui ler um artigo assinado por quatro pesquisadores para uma revista de psicologia, I. C. McManus, Matthew Freegard, James Moore e Richard Rawles. Os quatro mosqueteiros explicam que “embora muitas vezes seja chamada de ilusão, como Kihlstrom aponta, a figura do coelho-pato é, na verdade, uma figura ambígua, reversível ou biestável” (trad. livre, p. 167). Citam ainda uma definição do psicólogo Joseph Jastrow de 1899:
“A maioria dos observadores acha difícil manter qualquer uma das interpretações com firmeza, pois as flutuações são frequentes e surpreendem.” (trad. livre, p. 167).
Olhe bem a ilustração acima.
O que você vê primeiro?
Coelhinho ou patinho?
O que essa escolha diz sobre você? Provavelmente nada. Mas se quiser, pode inventar algo. Aqui está tudo permitido.
A ilusão criada pela palavra “hábito”
A expressão “o hábito faz o monge” me parece o mesmo caso da ilustração pato-coelho aplicada à linguagem. Traz significantes completamente diferentes que deslizam, tendo como cerne a dualidade da palavra “hábito” (peça de roupa ou prática religiosa), aplicada a uma personagem antiga, a figura monástica, já por si envolta em mistério.
Para explicar um pouco melhor: se fosse aplicado à minha ocupação, “o hábito faz a escritora", desfazemos o nó, pois nesse caso somente escolheríamos somente uma das ideias, de que a repetição e o treino nos constituem, já que é mais raro escritores se vestirem como Luke Skywalker (embora seja sempre uma possibilidade, considerando que escritores são gente esquisita).
Sobre a expressão “o hábito faz o monge”, a linguista e teórica da literatura Dad Squarisi explica que houve as duas versões, a primeira seria “hábito não faz o monge", modificada provavelmente por José de Alencar:
“Quando nasceu, o provérbio tinha sentido contrário do atual. (...) Em 1854, no folhetim Ao correr da pena, o cearense escreveu: ‘Hoje, apesar do rifão antigo, todo o mundo entende que o hábito faz o monge. Vista alguém uma calça velha e uma casaca de cotovelos roídos. Embora seja o homem mais relacionado do Rio, passará incógnito e invisível’.”
Fui futricar isso mais a fundo, já que não gosto muito do Alencar, e descobri que a frase é muito mais antiga, embora sempre negativa, conforme mostrarei. Dessa forma, parece que o Alencar realmente inovou.
E se foi quem popularizou a ambiguidade no Brasil da segunda fórmula, “o hábito faz o monge", criando a minha ilusão pato-coelho favorita em língua portuguesa, realmente tiro meu chapéu (o que é uma meia-verdade, pois eu não uso nem roupas monásticas, nem coisas na cabeça).
Mantos e monges, acepções mais antigas
Trago os resultados de minha pesquisa sobre o provérbio original, “o hábito não faz o monge”. Todas são negativas, ou seja, [aquilo] não constitui o religioso mesmo.
Em alguns outros idiomas:
🦆 Em inglês, “the habit does not make the monk” ou “The gown does not make the friar”; em alemão, “Die Kutte macht nicht den Mönch”, embora não sejam ambíguas, pois “gown" e “Kutte” só se refiram à peça de roupa, assim, não é tão divertida como “habit", que mantém a ambiguidade entre a peça de roupa e a repetição da prática.
🐇 Em espanhol, ficou “no hace el hábito al monje" e, em francês, “L’habit ne fait pas le moine”. Não faço ideia se a ambiguidade se mantém no francês, aguardo os comentários francófilos, mas imagino que sim.
🦆 Em latim, “Cucullus non facit monachum" (se refere ao capuz, não sei se havia um duplo sentido).
🐇 Encontrei a sugestão que o primeiro uso identificado está em Anselmo da Cantuária, século XI, “Non tonsura facit monachum, non horrida vestis, sed virtus anim”, muito divertida, conforme a tradução do Google Translator: “não é o corte de cabelo que faz um monge, nem as roupas horríveis, mas a virtude da alma”.
Amei esse roupas horríveis.
Jogar shade é ancestral: barbas e bodes
Como falar mal dos outros é literariamente clássico, é possível encontrar muitas outras derivações sobre aparência e inteligência, mas agora entrando no universo da barbearia:
🦆 “Se um filósofo fosse medido pelo tamanho da barba, os bodes ficariam com o primeiro lugar" (“Si philosophum oporteat ex barba metiri, hircos primam laudem ablaturo”, usei com o mesmo tradutor para refazer a frase, retirada retirei do Dicionário de expressões e frases latinas, org. Henerik Kocher).
🐇 Achei uma entrada na Vicipaedia sobre o dito “barba não faz o filósofo” que indica que o concurso entre filósofos e bodes constaria na peça O eunuco, de Terêncio, com estreia em Roma em abril de 161, mas fucei a peça rapidamente e não achei a menção. Me avise se achar. Até buracos de coelho possuem seus limites.
🦆 Localizei ainda no Luciano de Samósata (125-180) algo semelhante. Esse querido filósofo, além de incentivar a ficção científica na Antiguidade com seu A verdadeira história, com aranhas lunares, guerra interestelar, baleias gigantes e cogumelos de escudos, também compôs epigramas satíricos. Ou seja, devia ser bem legal ser amiga do Luciano. A tradução do epigrama de Luciano por Rafael Brunhara:
“Se tu acreditas que cultivar uma barba é adquirir sabedoria,
de repente até um bode de bela barba é um Platão completo”“Εἰ τὸ τρέφειν πώγωνα δοκεῖς σοφίαν περιποιεῖν,
καὶ τράγος εὐπώγων αἶψ' ὅλος ἐστὶ Πλάτων.”
(Livro XI, poema 430, 2019, p. 90)
Mas saindo da Antiguidade, aprendi que, na Idade Média, fora falar mal do povo que só tem pose, a frase sobre a roupa do monge também era um conselho contra estelionatários e golpes. Como as pessoas costumavam receber monges em casa por hospitalidade, nalguns casos, a vestimenta era usada para camuflar um golpe de ladrões, segundo Ramon Solano e Paolo Rondinelli, pesquisadores que me explicaram algumas das versões em outros idiomas.
Sabedoria que perdura até hoje, diante de roubo de fios elétricos por uniformes de operadoras de telefonia ou crimes muito piores por gente engravatada.
Hábito e hábito: meu agradecimento
Todo esse devaneio louco para destrinchar esse problema maravilhoso: afinal de contas, o que faz o monge?
O hábito ou o hábito?
E aplicando a minha ocupação: para ser uma escritora, preciso construir uma pose ou insistir no labor diário? Para a mulher que escreve não basta escrever, deve parecer que escreve?
Não faço a menor ideia. No mundo dos algoritmos e imagens rolando furiosamente pela tela infinita, com certeza a coisa é muito mais intrincada que um concurso entre barbas de gente e barbas de bodes.
O que sei é que construí uma outra frase dessas:
“A leitura faz a escrita”.
Daí você pode retirar suas interpretações:
- A primeira, a leitura ajuda na tarefa da escrita, assim, para ser uma escritora de verdade, preciso ler quilômetros de páginas.
- A segunda, somente quem está do outro lado da página nos constitui. Se não existir a outra pessoa, tudo o que faço desaparece.
E se somente com a leitura temos a escrita, queria te agradecer.
Somente por você é que existo nesta dimensão. 🧡
Referências do buraco de coelho
ANTUNES, Carlos Leonardo, BARACAT JR., José Carlos, BRUNHARA, Rafael Brunhara. “Flores da Antologia Grega”. In: Cadernos de Tradução, Porto Alegre, n. 44, jan./jul. 2019.
FREEGARD, Matthew, MCMANUS, I. C.; MOORE, James; RAWLER, Richard (2010). “Science in the Making: Right Hand, Left Hand: The duck–rabbit figure”. In: Laterality. University College London, 15 (1–2): p. 166–85, 2010.
KOCHER, Henerik (org.). Dicionário de expressões e frases latinas. Dicionário on-line.
SOLANO, Ramon Marti e RONDINELLI, Paolo. “Comparisons are odious’: how comparable are equivalent proverbs across languages?” In: HAL, 2021. ffhal-03504178f.
SQUARISI, Dad. O hábito faz o monge: história. In: Correio Braziliense, 24/03/2019.
Vicipaedia. “Barba non facit philosophum” [entrada da enciclopedia].
Cinco escritos
“Onde eu encontro os teus textos?” Essa pergunta apareceu duas vezes no formulário de opinião que veiculei sobre a newsletter. Seguem algumas sugestões recentes com ênfase na ficção:
📚 “Coração da aurora”, conto na emocionante antologia O dia escuro: contos inquietantes de autoras brasileiras. Organizado por Fabiane Secches e Socorro Acioli, o livro traz vinte textos com inspirações diferentes para falar de medos, violências e angústias do agora. Companhia das Letras, 2024.
📚 Ferozes melancolias: o amor, a escrita e a viagem, meu livro mais recente, lançado este ano. Converso muito sobre o ato de escrever. Também há várias crônicas de viagens literárias da China ao Congo, passando por Paraty, Porto Alegre, Roma e Santiago do Chile. Editora Rua do Sabão, 2024.
📚 Conto de acesso aberto: “O farol nos trilhos da Transiberiana”, publicado na deliciosa revista Maçã do Amor, n. 6, 2022.
📚 “Mergulho no azul cintilante", conto publicado na antologia A máquina do tempo, com org. de Enéias Tavares. O livro reúne o texto clássico de H. G. Wells, na tradução de Jana Bianchi e contos de Aline Valek, Ana Rüsche, Braulio Tavares e Felipe Castilho. DarkSide, 2021.
📚 A telepatia são os outros, a forma mais barata de viajar ao Chile. Na época de publicação, saiu indicado na lista “dez livros essenciais” do Estadão. Vencedor do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica e finalista do Argos e do Jabuti. Editora Monomito, 2019.
Sobre esta edição
Comecei a escrever isso como quem não quer nada e perdi completamente a noção do tempo. Foram umas 4h de pesquisas sem fim, em áreas que não faço a menor noção, e uma ameaça de torcicolo do lado direito do pescoço por digitar de uma poltrona. A bateria do laptop terminou e tive que migrar para a escrivaninha.
A lebre da frase do Luciano foi levantada por outra pessoa, a única interrupção a esse labor, uma ligação que atendi enquanto estava furiosamente digitando isso. Depois foi fácil encontrar o epigrama satírico barbudo.
Me diverti muito escrevendo no caderno “pato ou coelho", fazendo a foto e finalizando a montagem com base na imagem anônima original, reproduzida também no post, tudo para ilustrar gloriosamente esta edição.
Meu emocionado “muito obrigada”
É isso, meu amor. No ano que vem tem mais.
Agradeço se puder começar o ano fazendo uma fezinha e apoiar meu trabalho!
🧡 Aguardo comentários sobre essa viagem, inclusive com expansões e correções a meu grego e meu latim. Não tenho barba, nem sou bode ou filósofa. Errare humanum est.
🧡 Agradeço se puder repassar a pessoas legais.
🧡 Use o link para repassar a edição pro crush no WhatsApp e retomar a conversinha do “oi, sumido" com ares intelectualizados.
Canais
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Instagram: @anarusche
você instalou um triplex na minha cabeça com a história do hábito... não consigo decidir pelo significado que prevalece. a única certeza que tenho a respeito de tudo isso é que eu não tenho maturidade para o latim ("cucullus" me faz muito quinta série).
Adorei o lugar onde você foi parar a partir de uma questão!! Foi cair no buraco do coelho. Feliz ano! ♥️♥️♥️