O flerte ou a gramática da proximidade 💌
Correr alguns riscos bestas, criar pequenos desastres e outras dicas pouco confiáveis.
Olá,
Em maio, decidi que a Anacronista iria trazer temas quentes, a exemplo da última edição, sobre dinossauros na academia de ginástica, um assunto em voga há 200 milhões de anos, escrita em parceria com Thiago Ambrósio Lage.
Nesta edição, trago um outro tema anacrônico, sincrônico e diacrônico: o flerte.
A começar pela palavra, praticamente extinta na minha juventude (usávamos o terrível “paquera”), resgatada do abismo do arcaísmo para o linguajar atual.
Não faltarão dicas de leitura, afinal, aqui é assim, tudo vem com referência bibliográfica.
Com uma piscadinha,
Ana Rüsche
Carga viva em Brasília, Porto Alegre e Rio de Janeiro
Sigo apresentando meu novo romance. A parte boa é que, na primeira, teremos transmissão on-line!
Brasília: 29 de maio, quinta, 19h
Converso sobre o Carga viva na Biblioteca Demonstrativa Maria da Conceição Moreira Salles (BDB), do Ministério da Cultura, em Brasília, com Liara Oliveira, escritora, professora e pesquisadora. Na abertura, haverá uma leitura de Kaliedoscópica. Você pode nos assistir ao vivo pelo YouTube.
Porto Alegre: 7 de junho, sábado, 18h
Estarei na charmosa livraria Baleia com a querida escritora Irka Barrios para um bate-papo e autógrafos. Também ministrarei, na cidade, uma oficina de escrita — assim que a divulgação for ao ar, trago para cá. Livraria Baleia, R. dos Andradas, 351, Centro Histórico, Porto Alegre.
Rio de Janeiro: 15 de junho, domingo, 11h
Estarei na Bienal do Livro, autografando o Carga viva. Se estiver por lá, não deixe de me dar um alô. Estande da Rocco, pavilhão 3, N19/O38.
A gramática da proximidade
O tesão ainda respira, que sorte
Dois recentes sucessos mostram que o tesão ainda vive, ao menos, imaginariamente. Que sorte! Embora os algoritmos insistam em produzir aquele de efeito anticoncepcional mental — afinal, não existe uma dose segura de narcisismo estrutural (de tanto o troço só nos oferecer o que queremos ver, terminamos sem desejo, mesmo sendo pornografia, outro dia discorro sobre isso).
Enfim, o desejo por outras pessoas ainda segue vivo e pulsante. Aparentemente nos queremos enquanto espécie, ao menos ao meu redor. Love is in the air, logo chegam as festas juninas, os correios elegantes, as noites com fogueiras, o quentão e tudo isso no meu Brasil.
Dentro da minha bolha, dois sucessos recentes foram a série Dying for Sex, que deveria, como já afirmou a Renata Corrêa, se chamar de “Morrendo de tesão”, escrita por Elizabeth Meriwether e Kim Rosenstock, com atuações lindíssimas de Jenny Slate e Michelle Williams; e o livro De quatro, de Miranda July (trad. Bruna Beber). São obras que celebram o sexo em situações limites — no primeiro caso, pela morte iminente da protagonista da série; no segundo, bem, eu não li, mas parece ser naquele estilo de “é agora que gozo ou nunca mais” (você me corrija nos comentários), ambos absolutamente dentro do Zeitgeist.
Colocar o desejo dentro desse abismo, por si só, já é um tanto sedutor, criando uma busca necessária, fazendo com que se possa abrir a outras experiências.
E o que não é o flerte, senão correr riscos?
Não falarei de sexo e sim desse estranho jogo de criar proximidade. Assim, aqui vão alguns conselhos, que se fossem bons, não estariam sendo divulgados numa newsletter gratuita.
A minha credibilidade sobre o tema flerte é a carteirinha de “poeta publicada” e ter sobrevivido à era saudosa da precariedade no bilhete no guardanapo. E conto com uma quantidade assustadora de horas de voo e papo furado em mesas de bar.
Na dúvida, não acredite em mim.
O flerte e conselhos nem tão práticos
Confira: como estou me sentindo?
Antes de tudo, se não estiver se sentindo bem, não flerte. É o “se beber não dirija” da vida amorosa. Já tive episódios graves de depressão e sei, por experiência própria, que uma negativa chechelenta pode ser devastadora se não estamos bem.
Outra decorrência da falta de saúde mental é procurarmos gente cretina quando não estamos 100% e só piorarmos nosso quadro por nos envolvermos com quem não nos merece.
Mas, Ana, você irá me perguntar, existe um momento no qual temos um mínimo de saúde mental?
Olha, no capitalismo tardio, não saberia te dizer, parece que a espécie humana está condenada a derreter o dinheiro com jogos do tigrinho, apodrecer o cérebro num telefoninho e fritar em ondas de calor agravadas por déspotas enfurecidinhos. Mas você está entendendo, não está? Há dias em que simplesmente basta a própria mão e o cobertor.
Lugares certos e errados?
Muito bem. Diagnosticado o patamar mínimo de saúde mental, estamos prontos para ligar o “modo flerte”. Antes de tudo, não há lugar que não seja lugar.
Claro, o jantar de não sei quem, o clássico bar e até o último lançamento de livro podem ser lugares ótimos para a prática do flerte. É justamente por isso que escrevemos durante anos e lançamos livros: para juntar pessoas!
(Anoto que mais de um casal já se formou em lançamentos meus, sem contar a pegação, o que me dá um grande orgulho como escritora.)
Mas há quem prefira assumir a postura flertiva em lugares habituais: na vizinhança e no trabalho. Entendo, esses locais são mais familiares, há toda uma conversinha mole comum em jogo, assim, pode ser um ambiente favorável. O perigo é a recorrência. Mas quem não gosta de perigo? Não adianta, o risco é sexy.
Você não se livrará de encontros inesperados no elevador e no portão; ou da leitura de um e-mail besta em cópia aberta para toda a equipe. A academia de ginástica pode ser também um lugar desses, nunca saberei, pois sou viciada em fones com cancelamento de ruídos. A graça e a desgraça são o contato mais frequente.
Se tudo der errado, bom, essas experiências podem virar tema de conversa de bar.
Nota: nem vou falar sobre hierarquia no mundo do trabalho, obviamente você não vai fazer como certo povo nojento na chefia que dá em cima da equipe subordinada. Aliás, uma das partes mais tristes da pesquisa ao escrever o Carga viva, meu último romance, foi entender melhor o assédio no trabalho na década de 1980 e me conformar que, para a cena ser palatável à sensibilidade atual, optaria por algo um tanto mais leve do que realmente ocorria.
Saiba o que deseja (até onde dá)
É a coisa mais difícil do mundo saber o que desejamos. O Freud não seria tão famoso com seu charuto e não teríamos as milhões de considerações religiosas, para não falar na própria literatura, se soubéssemos aquilo.
É tudo muito confuso.
Mas ao sair flertando, precisamos de um mínimo. Quero transar gostosinho? Quero transar loucamente? Quero só sentir um quentinho no coração? Quero só flertar por puro esporte? Saber o mínimo é vida. Até para não entrarmos em frias e gastarmos nosso tempo com gente que não nos merece ou passando por situações estranhas. Há quem viva no modo platônico. Quem só se realiza no rala e rola. Quem não gosta de relações amorosas. Há de tudo, meu amor. É o caos.
Afinal, se soubéssemos no que dava, não era tão divertido e nem dava matéria escalafobética em livros.
A coisa da proximidade
A coisa mais linda do flerte é um existir com outra pessoa por segundos.
Colocar o mundo no modo avião e estar ali. Por alguns instantes mágicos, dedicar-se ao momento. A escutar alguém. Ouvir de verdade. Reparar nos detalhes do rosto, o formato do nariz, a expressão no canto de olho, o formato da mão. Ler a maneira de se mexer, se é para determinado lado, se é para frente. Prestar atenção. Estar ali à toa, só existindo com alguém. Pode durar só três segundos. Três inspirações. Mas você sabe quando acontece.
A recíproca também vale. A sensação de nos entenderem, nos acharem incríveis. Assim como vem, passa rápido. Se dá certo, nos deixa com o rosto desanuviado e um certo sorriso besta. Até frio na barriga e arrepio nos pelinhos do braço.
Muita gente tem medo de flertar por isso, há algo de desconfortável em criar essa proximidade sem o toque.
Afinal, é se abrir ao íntimo em segundos.
Pode ser até perigoso. Pode dar até vertigem. Respire.
[Irritação aleatória. Os algoritmos nos roubaram esse instante. Nos frearam com sua aceleração terrível. Nos expatriaram esse tempo do ócio com sua miríade imagética. Nos oferecem um duplo sem sabor. Nos tiram o tempo sem propósito. O fim do tempo do verdadeiro risco.]
A beleza do silêncio
Em alguns manuais de flerte por aí, constam ações ligadas a falar algo genial.
Mentira. É no silêncio e em certa risada compartilhada que o mistério vinga.
À distância
Obviamente é possível flertar por escrito ou em outras modalidades à distância, senão não existiria o termo sexting. Creio que a regra geral é a mesma, entenda e exista.
Use do nude com consentimento e da poesia, com moderação.
Inconvenientes? A eminência do desastre
Apesar de todo esse papo inspirador, pode acontecer de flertarmos mal. O pequeno desastre está para o flerte assim como a lei da gravidade está para o salto. Acontece. Já fui inconveniente, já foram inconvenientes comigo, imagino que você também tenha seu quinhão de experiências vergonhosas, confusas e desagradáveis. Faz parte.
Não é simples compreender quando somos inconvenientes. Saber quando forçamos a barra. Muitas vezes, escutar uma dica amiga pode ser a salvação. Ou observar a outra pessoa se retraindo ou te evitando um pouco. Os sinais nem sempre são claros, se fossem, não teríamos toda a literatura sobre o tema do desencontro.
De qualquer forma, se deixarmos o flerte no ar e a pessoa não cair, talvez seja melhor deixar assim. Um pouco poética essa atitude derrotista, eu sei, mas o que mais podemos fazer? E se passar vergonha ou receber uma rejeição, depois de superada a crise, vale contar a amigues. Nessa área, o desastre é amigo da boa história.
Nota: como a cultura de estupro pode ser confundida criminosamente com o simples “ser inconveniente”, deixo a observação, já estamos no primeiro quarto do século 21 e sabemos: não é não.
A gramática do toque
Convivi muitos anos com pessoas de nacionalidades que não permitem o toque sem aviso. Um toque no braço ou um abraço impensado poderiam provocar a reação de um gato ao ver um pepino (referência abaixo). Assim, mesmo entre compatriotas desse vasto Brasil, aconselharia primeiro observar como a pessoa se movimenta entre outras pessoas e depois a tocar.
Até iria além, dizendo melhor no ombro ou no braço, lugares menos desconfortáveis. É observar como a pessoa gesticula, como se aproxima. A depender do caso, aguardar é até melhor, pois se a pessoa é “peguenta”, o toque virá e você pode retribuir.
Claro que há quem taque um copo de cerveja na pessoa desejada e se ofereça para limpar — uma amiga usou essa técnica recentemente e beijou, enfim, tudo o que você imagina que está nos livros, na realidade, está ali num samba bem do lado da tua casa.
Praticar
Carece de fontes, mas alguma lei obscura nos obriga a partilharmos nosso desejo com o mundo antes de conseguirmos flertar com sucesso com aquele alguém especial. Até onde sei, não adianta nada você guardar todo seu borodogó para aquela pessoa. Sei lá porque, se você se guardar muito, dá errado. Vá flertando por aí. As coisas são imprevisíveis. Uma sorte.
Por fim, não se atenha a nada dessa conversa mole.
Seja o flerte que você queria ver no mundo.
Sincrônicas
📹 Gato com medo de pepino, vídeo do Pet e Dicas
💌 “Morrendo de tesão”, edição da newsletter da Renata Corrêa comentando a série Dying for sex.
💌 “Erotismo e Zeitgeist”, Isadora Sinay faz uma resenha de De Quatro, da Miranda July.
💌 “Amar simultaneamente”, edição da Segredos em Órbita, da Vanessa Guedes, sobre não-monogamia e outros jeitos de lidar com afeto. Na mesma newsletter, há um texto sobre como enviar fotos bem útil, “A cultura íntima dos nudes”.
📚 Clube do orgasmo: uma cartografia do prazer, livro Jüne Plã (trad. Sofia Soter). Não tem a ver com flerte e sim com sexo. Um livro lindíssimo, ilustrado e focado no prazer além da penetração.
Leia o Carga viva!
Meu romance está por aí. Nas livrarias e, quando tenho sorte, na boca e na cabeça do povo. Recebi mensagens muito emocionantes de primeiras leituras, de vídeos lacrimejantes a palavras bem bonitas.
O Carga viva dá um imenso material para o flerte, pois trata de amores e relações bem humanas, assim, indique o livro, converse sobre cenas, engate conversas, enfim, que o livro possa também se corporificar assim. E depois me conte, pois adoro saber dessas coisas.
Uma curiosidade: há um poema meu que serviu, por muitos anos, para pessoas se pegarem. Sempre me contam essas histórias magníficas. O poema é do meu livro Rasgada (2005) e está também no Furiosa (2016). Vai de presente para você, no final da newsletter.
Para produzir esta edição
Foi necessária muita conversa mole, resumida em horas em 6h de boteco. O rascunho e versão final desse texto fiz em 3h, praticamente um recorde anacronístico, o que pode levar a uma técnica de escrita mais sem vergonha.
Agradeço a quem me apoia financeiramente.
São essas pessoas que me fazem enxergar, onde só parece existir um grande material amorfo e sem sal, uma utilidade e senso de propósito. Que o flerte esteja com vocês!
A delícia da FLIMA
Encerrando com alegria: queria acrescentar que foi muito bonito participar da FLIMA — Festa Literária Internacional da Mantiqueira, um festival luminoso no coração das montanhas, com programação impecável, organizada pelo trio de curadores Cristiane Tavares, Maria Carolina Casati e Roberto Guimarães. O festival teve a presença de 15 mil pessoas nessa 7a edição, um público recorde.
Os debates foram gravados e estão disponíveis no YouTube. Você pode assistir à minha mesa com a Prisca Agustoni e a Paula Carvalho aqui: Emergência climática, os limites da palavra.

Muito obrigada!
Se gostou da edição, deixe um comentário querido, afinal, quem joga um charme sempre espera um biscoito.
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🧡 Perguntas binárias: melhor flertar por escrito ou ao vivo?
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Agradeço se puder fortalecer esse trabalho.
Canais
Telegram: https://t.me/criatividade Instagram: @anarusche
O tal do poema que o povo usa pra flertar por aí:
Feliz que haverá mais um evento em Brasília!
caraca, caiu como um carinho aqui hoje. deu até vontade de ligar e contar a fofoca toda...rs