Um truque falível: imagens reconfortantes para momentos de tensão 📚
A lambida no nariz para nos tirar de uma situação desconfortável. A temperatura agradável das lembranças felizes. A carta a uma amiga querida.
Olá!
A ansiedade deu as caras aqui. O motivo é que os preparativos para o lançamento do novo romance, Carga viva, começaram a ganhar forma. Bem, procuro exercitar a cabeça para não deixar de cultivar meu costumeiro otimismo.
Tenho um truque barato para esses momentos de tensão. Escolhi compartilhar isso contigo hoje. Que você possa se divertir um pouco lendo esse lero-lero. Procrastinemos sempre com classe.
Com carinho,
Ana Rüsche
Disclaimer: não tenho formação em nenhuma área da saúde. Assim, se sentir que precisa de ajuda com ansiedade, depressão ou outras questões, procure um profissional.
Carga viva, o tal do livro
Meu novo romance sairá em abril. A data é relevante, pois marca os 40 anos da eleição indireta de Tancredo Neves e seu falecimento, um dos inícios do longo processo de redemocratização. A história se passa em 1985 e nos dias atuais, uma forma de pensar nosso presente.
O livro traz uma história de amor. Um advogado e poeta, com os dias contados por um laudo médico, telefona a seu amor e pede o fica comigo até o fim.
“Agora, eram só os dois naquele Escort vermelho até o final. Dizem que paixão de praia não sobe a serra. Sobre o contrário, os dois ainda iriam provar.”
Quando começar a pré-venda, trarei notícias. Não vejo a hora de compartilhar a capa contigo.
Um estoque de imagens reconfortantes para momentos de tensão
O ponto de partida: a amizade e o senso de impotência
A ideia de compor esta lista especial, com imagens reconfortantes para momentos de tensão, surgiu da leitura de uma edição da newsletter Sofá da Surina: “108. Um dia vai acontecer".
Essa escritora e praticante budista nos conta como “tudo deu errado” numa cirurgia. Fiquei com o coração partido de ler as notícias, pois essa querida está a um oceano de distância, em Portugal, e o que eu poderia fazer diante de tudo aquilo? Como servir um chá quente com biscoitos imaginários? Como ser uma boa amiga diante de um infortúnio?
Daí me surgiu a ideia de dialogar com o relato, puxando um ponto específico: a força das imagens bonitas. Se não minimizam a perda, ao menos, nos distraem por instantes, um curioso poder da mente de criar uma máquina do tempo imaginário.
Além dos ensinamentos de Buda, obviamente melhores que os do Google para situações irremediáveis, depois de narrar seus infortúnios, a Surina traz o seguinte fecho à edição:
“17. Penso nisso enquanto observo a Lillipot. É linda, minha gatinha Lillipot. Ela vira de lado e mostra a barriga peluda. Faço carinho
o nariz rosa
tudo passa (disse o Buda).
Presta atenção. Sente só o pelo dela. É macio, é tão quente. Tudo pode se dissolver num segundo (disse o Buda). Tão fofinha, a minha gata. Ela ronrona de barriga para cima. O sol da primeira manhã bate no focinho e eu lhe faço um carinho, um carinho bom, um carinho infinito. Até me esqueço. Até acredito que pode durar para sempre. Até acredito que o sol nunca mais vai embora. Olha a barriga, dela, olha, ela é perfeita, ela é toda perfeita. Até acredito que este momento vai durar para sempre. Ela é linda. Absolutamente linda.”
Lendo isso e assoando o nariz (sou chorona), lembrei de algo parecido: de meu estoque de “imagens reconfortantes”. Um estoque de momentos inesquecíveis para os guardar na mente, um inventário de instantes felizes. Como não posso me teletransportar para Portugal, decidi catalogar algumas dessas imagens e as compartilhar.
Costumo lembrar desses acontecimentos minúsculos quando estou dentro daquele tubo barulhento da ressonância magnética ou quando estou sob ataque no dentista. Ou no horário de pico entre a estação Consolação na junção da Estação Paulista, em São Paulo, quando o trânsito de pedestres estanca numa massa humana imóvel, respirando juntos. Ou quando quando fico muito acelerada, antes de algo importante (o caso atual, o início de preparativos para o lançamento de um trabalho de anos).
Há também o contrário: quando procuro prolongar algo prazeroso, como conferir uma aquarela desengonçada que termino de fazer ou ver um caracará pousado majestosamente no poente, e quero que isso se estenda por ainda alguns instantes.
O método é falível. O truque é uma coisa barata. Não vai mudar a emergência climática e a extinção massiva de tantos seres não humanos. Muito menos terminar com a propriedade privada. Ou com notícias tarifárias ou com novos-velhos ditadores. Não muda em um centímetro a lógica massacrante sistêmica. O truque é só um atalho para respirarmos um pouquinho melhor. Roubarmos um instante e respirar. Você logo vai entender.
O truque falível é se agarrar à memória. Ao que construímos e douramos com as lentes suspeitas da experiência. Começa com uma lista. Abaixo vai a minha. A partir dela, você pode construir a sua, embora eu tenha certeza que você já possui uma semelhante.
Depois de passar ao papel a listagem abaixo, reparei em algo curioso: a temperatura é o elemento central. O tato, um sentido tão difícil de descrever, oferece algum tipo de equilíbrio térmico imaginário. Como seria para você?
Lista de imagens reconfortantes
A barriga de meu cachorro contra o sol
Meu cachorro vira-se de barriga para cima. Sua língua cor-de-rosa lambe meu nariz. É um pôr-do-sol e a parte caramelada de seu casaco de pele quente brilha, rareando na barriguinha.
Ele já faleceu, mas dentro de mim, segue tão perfeito quanto a gatinha portuguesa Lillipot.
A onda transparente num dia de verão
O mar que conheço melhor é bravo e cinzento, com a fúria oceânica a fustigar as areias. Mas há um dia no ano em que tudo isso muda: um dia de verão. O mar está azul esverdeado, a água está tépida e tranquila. Furo uma onda quase transparente e lenta. Tenho dezesseis anos e procuro fixar bem a sensação na cabeça.
As azaleias na manhã
É inverno, mas o dia está apaixonantemente azul. Caminho e vejo as azaleias explodirem num rosa choque sob a luz da manhã. Há milhões de mamangavas, abelhinhas e outros insetos, tão felizes com a cena quanto eu. O frio me envolve, mas não é demais, é mais um abraço para te acordar ao dia e nos chacoalhar para a vida.
O laranja do chão de caquinhos
O chão do quintal formado por caquinhos vermelhos, de um laranja quase vermelho. Brinco com água, tenho uns sete anos. O calorão no sol à pino, os caquinhos de cerâmica pelando de quentes. Escorrego só um pouco, fico de barriga para cima, deito olhando as nuvens. Não me importo ao molhar os cabelos com a água, o laranja me sustenta.
O muro caiado de branco
É inverno, mas o muro tomou sol o dia inteiro. Enquanto tudo ao redor esfria, o muro segura a temperatura, mesmo sendo final de tarde. Abraço o muro cálido para segurar o sol no mundo. O muro me abraça de volta, me marcando de cal no nariz.
A matéria das memórias: a temperatura?
Ao reunir essa lista de imagens pela primeira vez para a Surina, percebo o quanto o tato e a temperatura das memórias ficaram nítidas. Ao ponto de quase conseguir as entender pela pele. Uma espécie de recuerdo epitelial do bem-estar.
Descobri uma palavra ao redigir essa edição, “imagoteca”, um acervo de imagens. Fiquei pensando que, nessa minha imagoteca, há algo que escapa justamente da visão, mas se fixa na memória. A temperatura do mundo.
Surina querida, espero que essas palavras te tragam algum conforto.
Para você que nos lê também.
Afinal, quem não sente um aperto no peito de quando em quando, não está com o coração batendo bem. Que possamos cultivar nosso próprio repertório de instantes mágicos, na temperatura harmoniosa por melhores dias.
É na falha da memória que a gente se reconstitui.
Sincrônicas
📚 Um adendo à newsletter da Surina: até o número da tal edição citada é cabalístico, pois o japamala, uma espécie de rosário budista, possui 108 contas, justamente o título do último livro dela.
📚 Não tem a ver, mas quis deixar indicada esta edição da Paisagem insular, da Francesca Cricelli, pois tenho saudades dessa minha amiga: “Silver waves summit in white lace: a luta contra o patriarcado, o ódio às crianças e a passabilidade europeia”.
📚 Andei relendo Água viva, da Clarice Lispector, talvez tenha influenciado as ideias aqui. Será nosso livro a ser debatido no próximo encontro de 5 de abril no Filamentos, meu projeto para debater literatura e ecologia, em conjunto com a editora Bandeirola.
Anacrônicas
📚 A arte de perder é o tema de um dos meus ensaios no livro Ferozes melancolias: o amor, a viagem e a escrita (Rua do Sabão, 2024). Conheça o livro.
🟦 A Quadradinho: a coisa mais reconfortante nos últimos tempos foi a criação de uma newsletter semanal com amigas escritoras, com um guia de cultura no Distrito Federal. Somos um quarteto, Deborah Fortuna, Karine Canal e Priscila Calado, respectivamente uma paraense, uma gaúcha e uma candanga. Completo o quarteto na minha paulistice.
Na edição atual, a Deborah Fortuna, autora da newsletter Uma história em todo lugar, comenta sobre trilhas e passeios inspiradores.
🧶 Encontrinho e sorteio
Vamos bater papo? On-line e ao vivo. Hoje, sexta-feira, 28 de março de 2025, logo mais, às 13h no fuso de Brasília. O tema será o filme Ela (“Her”), de Spike Jonze (2013), e apaixonar-se por Inteligências Artificiais.
Também vamos sortear um exemplar do clássico Felicidade clandestina, da Clarice Lispector, entre quem está com o apoio ativo na newsletter.
O link do Zoom vai ser o mesmo de sempre. Para ter acesso ao link, basta clicar de um computador aqui e se abrirá o evento no Google Agenda (no celular, abre um evento em branco, mas no computador o link funciona).
Sobre esta edição
Geralmente planejo minhas próximas edições. Mas essa saiu espontânea, foi gostoso visitar essas memórias e fazer a lista. As notícias do governo Trump, especialmente na parte ecológica, andaram me afetando muito. Assim, cuidar da própria cabeça é um exercício relevante. Demorei cerca de 4h para ditar as ideias ao aplicativo de transcrição de voz, fazer uma primeira versão no computador, editar e corrigir.
A aquarela que ilustra o post foi a primeira que deu certo na minha vida! Um retrato de um vaso que ganhei de uma amiga, a Eduarda Brum, no ano passado, que segue lindo e verdejante.
Agradeço a todas as pessoas que apoiam esse trabalho e façam com que persista no labor do teclado.
Muito obrigada!
Se lembrou de algo assim que faz a gente se transportar para longe, caixa de comentários está aberta.
🧡 Pergunta binária: verão ou inverno? (ainda existem estações do ano?)
🧡 Suas memórias queridas são táteis ou visuais? Ou entra o olfato? E a música?
🧡 Aleatória: existe alguém que você queria confortar, mas está longe? Vamos de correio elegante.
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Muito obrigada pela leitura!
Canais
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A arquitetura da estafa e a insânia artificial
Olá! Agradeço a todo mundo que prestigiou o Ferozes melancolias, meu livro recém-lançado de ensaios sobre o amor e a escrita, com crônicas de viagem. Desse lado da tela, passo por momentos duros da vida pessoal, e se tudo correu bem nos últimos dias, foi por conta de uma comunidade que vamos criando ao longo dos anos. Assim, aqui vai um sentido muito obr…
A minha imagem sou eu cheirando a nuca da Liz bebê. 🌸
Ana, que edição gostosa, tão acolhedora. A Surina deve ter andando!
Gosto de falar sobre memórias <3 as minhas são umas bela mistura, mas acho que a maioria é visual com trilha sonora. Ainda assim, o olfato é rapidamente ativado quando um cheiro conhecido aparece:) gostei de perceber como podemos diferentes até no jeito de guardar memórias. Um beijo e até breve! Empolgada para o lançamento:)