A arquitetura da estafa e a insânia artificial
Tudo piorou, reparou? Claro que é de propósito. A lógica do lucro e os sistemas. Devoram nossos minutos.
Olá!
Agradeço a todo mundo que prestigiou o Ferozes melancolias, meu livro recém-lançado de ensaios sobre o amor e a escrita, com crônicas de viagem. Desse lado da tela, passo por momentos duros da vida pessoal, e se tudo correu bem nos últimos dias, foi por conta de uma comunidade que vamos criando ao longo dos anos. Assim, aqui vai um sentido muito obrigada!
Você pode adquirir o livro com a editora Rua do Sabão. Já fizemos o lançamento em um domingo congelante e chuvoso em São Paulo, metereologia que pessoas queridas desafiaram em abraços quentinhos (foi muito bonito!).
Nesta quinta (amanhã), no dia 5/9, ocorre o lançamento em Brasília, partir das 19h, na Livraria Circulares.
A edição de hoje é sobre uma irritação específica. Afeta o tempo disponível para escrever melhores newsletters para você: a piora generalizada em sistemas eletrônicos. O caos comunicacional. Abordo a arquitetura da estafa, cozinhada por gente que não dá a mínima para o que sentimos e vivemos.
Roubar tempo desse sistema e escrever para você não foi simples, embora admito: reclamar é prazeroso. Assim, agradeço a leitura.
Com carinho,
Ana Rüsche
A arquitetura da estafa e a insânia artificial
Os propósitos do caos
Preciso empacotar o mundo burocrático esperneante para conseguir escrever. Agendar pagamentos, recolher impostos, resolver contratações atrasadas do segundo semestre. Quando meus pais sugeriram por décadas para que eu prestasse um concurso público, nunca imaginei que seria mais burocrático ser frila, freelancer, a famosa profissional autônoma, do que integrar, por exemplo, a força de trabalho de um cartório de um tribunal.
Considerando que perdi dias na virada do mês num mergulho burocrático, sem volta e sem resolução, pois a lista de pendências só parecia aumentar e dançar macabramente aos meus olhos, vim fazer o que a classe média adora fazer, em especial à branca e urbana da qual pertenço: reclamar na rede social (será que o Substack é uma rede social?).
A verdade é que a precarização no mundo do trabalho é acachapante. Engolfa todas as pessoas que não pertencem ao 1% dos super ricos. Aliás, a maior astúcia das pessoas poderosas hoje é se esconderem muito bem. Nem sabemos quem são. Quais seus nomes? Quais seus rostos? Em quais castelos vivem? Com exceção de algum ego desajustado e despótico a la Musk, paira o desconhecimento geral dos verdadeiros detentores do poder. Da emperucada Maria Antonieta tínhamos até o bordão!
No setor de serviços, com o uso galopante de novos sistemas computacionais e chamadas inteligências artificiais, as coisas pioraram. Quando a lógica do lucro é a única lógica, o troço vira isso mesmo. Esse furdúncio apocalíptico e antropocênico cruel.
Temporalidades embaralhadas: mescla tecnológica
Já fui estagiária de direito numa época em que se mandava cartas. Meu trabalho era basicamente fazer a redação solicitada dentro de um modelo, digitando no computador; e depois, a sócia do escritório corrigia minhas vírgulas numa misteriosa regra gramatical própria. Na reta final, eu agarrava o papel canetado de vermelho, incorporava as correções, imprimia a carta e colhia a assinatura, dobrava em três e as colocava numa pilha. Era bonito observar os envelopes cor de creme, todos iguais, ao final do dia, um senso de tranquilidade, pois eu nunca entendia bem o que estava naquelas cartas.
Ao longo dos anos, presenciei a época de implantação das intranets e a febre dos e-mails. Finalmente, não era mais preciso colher assinaturas ou acatar vírgulas esdrúxulas, embora solicitações sem sentido seguiram aparecendo e comecei a entender o que estavam naquelas solicitações (afinal, se trabalho fosse bom, não iríamos ganhar para isso). Foi a era de imprimir e arquivar e-mails, todos considerados muito importantes. Em poucos anos, outros canais surgiram no mundo do trabalho, como as mensagens de texto. Em uma década depois, em junho de 2013, para garantir a comunicação com meus amigos durante uma manifestação, instalei o WhatsApp.
Fiz toda essa recapitulação para apontar a sobreposição temporal das tecnologias comunicacionais: hoje é possível usar do chat no Discord à carta registrada. As possibilidades dos canais de comunicação, numa velocidade frenética e sobreposta, terminaram num nó, numa espécie de engarrafamento de mensagens. Coexistem diferentes temporalidades tecnológicas ao mesmo tempo.
No mundo do trabalho, surgiu um fenômeno curioso com esse nó: a escalada para confirmar e reconfirmar informações, pois tudo parece que não é entregue com toda sua qualidade. Algo se perde o tempo todo.
Vou telefonar para resolver um problema com o cartão de crédito. Do outro lado, me pedem o número no token no celular. No celular, a confirmação com meu polegar direito. Ao final, não dispensam dados impressos no cartão físico. Vou resolver uma pendência acadêmica e, além do domínio dos mais diferentes sistemas eletrônicos e upload de sei lá o quê, não se dispensa os documentos digitalizados enviados por email. Vou terminar contratações. Preciso tirar oito certidões digitais, realizar o upload delas diretamente na plataforma para a qual ainda não tenho cadastro. A plataforma é nova. Sempre é. As plataformas sabem mais do que eu mesma sobre minha pessoa, mas me pedem mais dados. Vou terminar um cadastro de outras contratações. Na outra plataforma, são mais dez. Nenhuma das certidões é a mesma. Em todas, nada consto aos olhos do sistema (é uma sorte não constar e uma sorte dupla o cistema reconhecer minha existência dentro do binarismo de gênero — para tantas pessoas, o problema já começaria aí).
Além das diferentes temporalidades tecnológicas concomitantes, será que a solicitação excessiva de dados, a moda do big data se espalhou para outras frentes? Afinal, devemos ser uma espécie de ChatGPT imaginária, ninfas translúcidas e dispostas a cumprimirmos as mais exóticas das desejantes solicitações de fluxos de informação.
Há uma constante nessas ocorrências: quando preciso da ajuda de alguém, as pessoas envolvidas são maravilhosas.
Sempre possuem uma palavra de alento, pois entendem a falta de coerência, embora não possam admitir isso abertamente. A outra constante: são sempre poucas. Muito mais sobrecarregadas do que eu (fato que me envergonha a pedir ajuda). Tampouco compreendem o motivo daquilo tudo também.
É louco pensar que minha abandonada formação jurídica é meu arrimo espiritual nessas horas, pois confere alguma espécie de espírito de sobrevivência burocrática àquilo tudo. E meus anos de pesquisa na literatura de ficção científica também me ajudam, pois o pesadelo tecnológico faz parte dessas imaginações. Mesmo assim, nenhuma das duas formações tenha me preparado para vivenciar isto: a arquitetura da estafa.
A arquitetura da estafa e a lógica do lucro
Vamos combinar: esse cyberpunk bem pouco sexy da burocracia é de propósito. Entretanto, o propósito fica muito distante, assim, parece se dissolver lá longe. Mas é a velha lógica de espremer e tirar o máximo possível da força de trabalho — nesse texto, estou tratando do setor terciário e dessa classe média pejotizada da qual pertenço, embora não se resuma a essa fatia.
A sobreposição de sistemas é muito mais barata do que parar, respirar, raciocinar e desenvolver algo efetivo. Um sistema que funcione bem custa caro, são meses de programação nisso. O excesso de solicitações administrativas possui a mesma raiz: é mais fácil pedir para a parte frágil da relação um monte de coisas. Afinal, triar, planejar, arquitetar e segmentar são ações que custam.
Acompanhei bem a implantação de sistemas de informática. E sei como é custoso desenvolver programas bons, acessíveis a um grande número de pessoas e específicos para algumas funções. Há estudos, testes, implementações, ajustes. A precarização faz com que a gente desenvolva tolerância a programas mal pensados, mal testados, sistemas sem sentido e fluxos de trabalho absolutamente inúteis. E quem paga a conta?
Não responda ainda. O uso de tecnologias ineptas, aliado à aparente facilidade de meter uns bots onde não se deve — respostas automáticas sem a menor coerência, nos leva a uma espécie de delírio comunicacional no qual faria do visionário Franz Kafka um garotinho aprendendo as primeiras letras.
Esse quadro cruel é agravado pelo rompimento final entre as comportas "vida pessoal" e "vida do trabalho". A mistura de tudo isso agora mesmo.
A notificação persiste a toda hora. Nunca desligue. O sonho dourado capitalista enfim. E a partir das minhas duas formações, a jurídica e a da ficção científica, deixo aqui anotada a obviedade sobre o futuro: nada é tão ruim que não possa piorar.
As palavras nunca se sustentam contra esse tipo de fato. O capitalismo não se distingue da barbárie. O que fazer? Talvez reiterar que o 1% existe? Que as coisas não são esse caos por puro acaso? Baratear nosso tempo é baratear nossa vida. Só a luta muda a vida. E a luta é longa, durante uma noite sombria e sem estrelas. Esses dias, amealhando meu tempo para ler a autobiografia política da ativista indiana Vandana Shiva, é perceptível como pequenos avanços demoraram décadas e envolveram um mar de gente.
Sobre a vida comezinha, talvez seja procrastinar lendo com orgulho, roubar dessa lógica um tempo para a vida. Abraçar as pessoas que amamos. Celebrar a sabedoria e a trajetória das pessoas que vieram antes. Como diria D. Mara, minha inesquecível vizinha falecida octogenária, cujo sobrenome nunca aprendi, mas a lição carrego sempre comigo: "a vida, ela passa muito rápido".
Duas leituras
Relacionam-se com essas divagações, de maneiras complementares.
Vandana Shiva. Terra viva — minha vida em uma biodiversidade de movimentos. Trad. Marina Kater. Boitempo, 2024.
Cathy O'Neil. Algoritmos de destruição em massa. Trad. Rafael Abraham. Rua do Sabão, 2021.
🌿 Filamentos: leituras do segundo semestre
Falando em leituras, a lista do Filamentos está bem bonita. Em setembro, mês do meu aniversário, vamos ler Os Despossuídos, livro clássico de Ursula K. Le Guin (Aleph) e O acontecimento Antropoceno: A Terra, a história e nós, não ficção muito necessária, de Christopher Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz (Quina).
Nosso próximo encontro acontece no dia 21/9. Para participar, basta apoiar o projeto no Catarse.
Agenda: encontros presenciais
📚 5 de setembro, quinta, 19h: Lançamento do Ferozes melancolias na Livraria Circulares (Comércio Local Norte 113, bloco A, Asa Norte, Brasília). Vai ter truck vendendo drinks. A Eduarda Brums e a Priscila Calado vão me acompanhar, apresentando o livro.
📚 12 de setembro, quinta, 19h: estarei na AIGO Livros, junto com Jana Bianchi e Kali de Los Santos para conversarmos sobre fantasia e ficção científica produzida no Sul Global (Rua Ribeiro de Lima, 453 - loja 73, Bom Retiro, São Paulo).
📚 14 de setembro, sábado, 14h: aniversariarei na Bienal do Livro de São Paulo (só virginiana para trabalhar justo nesse dia!). Venha me dar um abraço, estarei com o George Amaral, autografando o Manual de sobrevivência na escrita, da editora Bandeirola. Estande da ABERST, Rua J, 79.
📚 19 de setembro, quinta, 19h: estarei com minha parceira de Leituras Extraordinárias, a Paula C. Carvalho, e com nossa convidada especial, Gaía Passarelli, para conversarmos sobre o livro publicado pela Paula, Direito à vagabundagem - As viagens de Isabelle Eberhardt. Não precisa ler antes para participar. Livraria da Tarde (R. Cônego Eugênio Leite, 956, Pinheiros, São Paulo).
📚 21 de setembro, sábado: estarei na FLIM, a 10ª edição da maior Festa Literária do Vale do Paraíba. O evento acontece de 20 a 22/9. Acompanhe a programação: https://www.instagram.com/flim.sjc.
Sobre esta edição
Para produzir esta newsletter foram necessárias 3 horas de ligações telefônicas em 3 dias de semana, 27 horas de navegação em diferentes plataformas, 2 reuniões on-line, 1 cafezinho para tirar dúvidas e muita saliva de reclamação. Redigi o texto numa sentada de 5 horas, terminando o texto morta de fome. Falando disso, foram necessários ainda dois cookies, devorados por pura ansiedade.
Com os apoios recebidos, consegui manter essa edição da Anacronista aberta a quem quiser ler, sem inserir paywall. Durante um inferno astral estendido, se não fossem vocês, isso tudo não aconteceria. Agradeço de coração.
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Muito obrigada!
Agradeço demais a sua leitura e prometo não reclamar tanto na próxima edição. Afinal, a vida é muito generosa também.
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Canais
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Em 2024 e em todos os dias,
todo poder à alegria,
ao desejo e
à imaginação!
vim aqui só para deixar minha reclamação anticapitalista rs
Me indentifico com baixar X certidões para apresentar um projeto, depois para tê-lo aprovado e depois essas XX e mais XXX ATUALIZADAS para receber, daqui a 30 dias corridos. Sobreviver a tudo isso e fazer de novo tantas vezes quantas forem necessárias. Afinal, boletos chegam né...
Obrigada, Ana! Suas news sempre me inspiram :)
Sentei para escrever a minha e pá, chegou a sua... pra me fazer procrastinar, mas com classe!
Estou me tornando um dinossauro tecnológico para sobreviver. Sinto que o IA será minha fronteira definitiva, não entendo nada disso e me dá uma preguiça. Prefiro dar água para as plantinhas. Tento fugir ao máximo das faturas e penso que aí está minha salvação rss. Texto maravilhoso, acredite que sua estafa também é a de muitos, inclusive a minha. Abraço.