A escrita e a máquina: a paixão pelo simulacro 📚
Especial sobre Inteligência artificial e escrever. Apaixonar-se por um pássaro artificial. Um advogado sem opinião. Notícia: meu romance novo vem aí.
Olá,
Esta é a segunda edição do especial A escrita e a máquina.
Agradeço todos os comentários à primeira edição, “A escrita e a máquina: do pecado aos esteróides”, chegaram por e-mail e aqui no Substack, renderam conversas. A próxima e última edição sairá em abril.
Confesso que dei uma bloqueada entre uma edição e outra. Parece que quanto mais leio e pesquiso sobre Inteligências artificiais e a escrita menos sei — o que pode ser uma marca de sabedoria ou de pura ignorância.
Na era em tudo existe e não existe, agradeço que você esteja comigo agora.
É só assim que esse texto ganha vida, na dimensão real da leitura.
Ana Rüsche
Romance novo: Carga viva vem aí!
Já temos data para o lançamento de meu romance.
O pano de fundo trata da eleição indireta de Tancredo Neves e de seu falecimento em 1985. Assim, o livro chega no marco de 40 anos, uma forma de preservar a memória histórica.
Os primeiros lançamentos:
25 de abril em Brasília, sexta na Livraria Circulares (se quiser deixar anotado na sua agenda do Google, basta abrir esse link no computador*)
8 de maio em São Paulo, quinta na Livraria da Tarde (se quiser deixar anotado na sua agenda do Google, basta abrir esse link no computador*)
O romance sairá pela editora Rocco, a mesma casa da Clarice Lispector e da Margaret Atwood, editora que completa 50 anos.
Haverá lançamentos em outras cidades e também um on-line.
A pré-venda começa agora no final do mês. Segura, coração!
* Se abrir esse link no celular, o evento fica em branco.
Cadê as AIs para consertar esse bug?
A paixão pelo simulacro
Apaixonar-se por um carcará artificial
Caminhava pelas calçadas calmas da Asa Norte em Brasília. Largas e sombreadas, unindo os prédios retangulares com os térreos abertos, com algumas fendas de lama. O sol descia, naquele esplendoroso momento que faz a capital federal ser tão famosa, fazer do céu o próprio mar. Avistei, em cima de um dos prédios, um carcará contra a luz.
Parei para o contemplar. Antes da minha estadia no Distrito Federal, somente conhecia os carcarás da música que cantávamos no coral universitário — uma canção de João do Vale e Chico Buarque (1981), com o refrão sensacionalista, “carcará, pega, mata e come”. Quando vi um carcará ao vivo pela primeira vez, fiquei ressabiada, botei no Google para confirmar se era mesmo aquele pássaro famoso, um parente dos falcões. Era. Daí descobri que eram comuns em meus percursos. Aos poucos, observando de longe, fui decidindo por sua elegância, quase uma solenidade caracaresca. Talvez até façam jus à fama predatória, mas, convenhamos, não são os únicos.
Naquele dia, ao ver o majestoso carcará ao pôr-do-sol, agradeci. Antes de dormir, revivi novamente aquele momento, como se a imagem velasse por mim, as coisas que fotografamos com o coração.
No dia seguinte, qual não foi minha surpresa em encontrar o pássaro no mesmo local, no mesmo horário. Dessa vez, fiz uma foto. Decidi que era uma fêmea e deveria estar chocando ovos. Segui meu caminho, ainda com o coração muito cheio de sol.
Como nos contos de fada, sempre há um terceiro encontro. O encontro terrível. Pois bem, no terceiro dia, você já sabe: o carcará estava sobre o prédio. Me preocupei, contrastei com a foto, será que estava doente? Ou era normal uma carcará fêmea ficar tanto tempo chocando ovos?
Fui assuntar com o porteiro, "ele sempre fica ali?", apontei o pássaro andares acima de nós. O porteiro, contendo a risada, me esclarece:
— Moça, aquilo é um espantalho pra espantar as pombas.
Agradeço, dou um sorriso, mas estou mortificada, mal consigo me mexer. Não pela vergonha. Mas por nutrir um carinho por aquele animal de plástico. Criei uma relação. Concedi um significado. O encanto se quebrou no ridículo. De certa forma, também me tornei um espantalho: parada ali, com o coração triste, desacreditada.
Volto a caminhar matutando sobre simulacros. Começo a entender um pouco o que Natanael sentiu quando se apaixonou por Olímpia. O pobre se apaixonou por uma autômata, sem perceber que ela não era humana. Quando a verdade vem à tona, todos riem dele. É o protagonista do conto O Homem da Areia (1816), do escritor romântico E. T. A. Hoffmann, uma espécie de Frankenstein da literatura alemã, influenciou a psicanálise décadas depois. E nós, ao ler a história, rimos do pobre Natanael também — não por crueldade (ou também por isso), mas porque há algo profundamente humano nessa ingenuidade.
O que nos diferencia das máquinas, no fim das contas, se não nossa capacidade de projetar amor em coisas inanimadas?
O advogado sem opiniões: tanto faz desde que o trabalho esteja feito
Com o coração partido, sigo caminhando pelas calçadas sombrias do poente. E então me lembro de uma outra história, um pouco mais inquietante: estava eu ministrando uma aula sobre escrita acadêmica há um tempo, quando um aluno, advogado engravatado, levantou a mão e disse, sem um pingo de hesitação, que usava o Chat GPT para escrever suas peças. "Ele escreve melhor do que eu", completou sem constrangimento algum, com aquele tom um pouco desafiador que alguns alunos usam para mostrar que nossa hora-aula vale pouco.
A tecnologia era nova. Ainda havia muita hesitação em simplesmente assumir que se usava um robô de texto. Como gosto de tecnologia, achei que poderíamos parar um pouco para comentar o tema com a turma. Afinal, se tem algo que o Chat GPT e professores possuem em comum é uma espécie de estoque da paciência infinita.
Pedi para o advogado trazer mais detalhes. Em seu terno, gel no cabelo e com algum cansaço no rosto, nos confidencia algo essencial, mas que poucas pessoas admitem em público:
— Olha, tanto faz o que o Chat faz. O importante é o trabalho estar feito.
Cumprindo meu papel, trouxe algumas perguntas, algo como: e se o robô tiver outros valores que você? Se defender outros argumentos? O engravatado nos assegurou que confiava mais na inteligência artificial do que em si para tomar as melhores decisões. Agradeci a rara sinceridade ou a loucura demasiada, fiz algum comentário para a turma toda, naquele tom “não se esqueçam de ler tudo com atenção” e retomei a aula um tanto mesmerizada.
Não deixa de ser curioso um homem de leis, alguém que protege o destino de pessoas, delegar suas escolhas à máquina. Mas nessa falta de noção ou na sinceridade extrema, reside uma prática comum: delegar nossos valores à máquina.
O verdadeiro perigo. Incidir no apaixonante risco de deixar que ela decida o que deve ser dito.
Uma máquina, por mais sofisticada que seja, termina gerando coisas dentro das estruturas que a criaram. Será que poderia escrever algo revolucionário? Mas na era dos simulacros, enquanto o carcará não for acusado de ser plástico e a namorada não for descoberta como um robô, quem liga?
O trabalho está feito.
Extra: como diferenciar um texto de máquina e um humano? Só contar o número de vezes em que usa a palavra “envolvente” em qualquer descrição ;)
Sincrônicas
🤖 Ler a Vanessa Guedes me ajudou a idealizar essa série. Assim, indico “Como sobreviver à Broligarquia: Tech bros, autoritarismo e o que fazer a respeito para nos defender desses pulhas", publicado na Segredos em Órbita.
📚 Recomendo a seguinte edição de O Homem da Areia, de E.T.A. Hoffmann: tradução de Eduardo Berliner, editora Ubu. O conto é a base do famoso texto de Sigmund Freud, “O inquietante” (1919).
📚 Não consigo deixar de lembrar de The Simulacra, romance de Philip K. Dick (1964). Há alguma edição recente em português? Se souber, agradeço, não encontrei. Daí atualizo o post.
🧶 Encontrinho da Anacronista
Vamos bater papo? On-line e ao vivo.
Próxima sexta, 28 de março de 2025, 13h em Brasília.
O tema será o filme Ela (“Her”), de Spike Jonze (2013), nada melhor que se apaixonar por uma inteligência artificial com a voz de Scarlett Johansson. Após doze anos, o filme parece trazer questões das mais atuais.
O link do Zoom vai ser o mesmo de sempre. Para quem nunca participou, basta se inscrever aqui: https://anarusche.kit.com/encontrinho. Se quiser anotar no Google Agenda, aqui vai o link (no celular, abre um evento em branco, mas no computador o link funciona).
🌿 Ecologia e literatura: sucesso!
A campanha do Catarse, realizada pela editora Bandeirola para lançar meus livros sobre literatura e ecologia, superou nossas expectativas, fechamos em 112%! Obrigada a todas as pessoas que deram uma força e acreditaram no projeto. Agora, os livros vão para a gráfica.
Quimeras do Agora: Literatura, ecologia e imaginação política no Antropoceno. Na intersecção entre teoria literária e ecologia, comento utopias e distopias, de obras clássicas e contemporâneas.
Filamentos: Leituras ecológicas comentadas – um guia para quem busca novas leituras. Reunimos 45 nomes da ficção e da não ficção.
Se você gostaria de adquirir os livros, aqui vai: https://www.bandeirola.com.br/bandeirola-ensaio-e-critica
Sobre esta edição
Para escrever esta edição, usei muitas vezes AIs no rascunho e na edição. O texto final é 100% orgânico — não por purismo, mas ainda esses programas não chegam lá. No ano que vem, quem sabe.
Se você tem interesse em saber como trabalhei, nesta segunda, 24/3, publicarei o descritivo de prompts, frameworks e ferramentas no mural para apoiadores do Apoia.se.
Assim, fica de recompensa para quem contribui com a newsletter, afinal, vocês são incríveis. Estou terminando de redigir esse material.
A carga horária foi a mesma de sempre, uma tonelada de horas lendo e pesquisando para decidir por um caminho mais literário. A escrita então bateu as costumeiras 6h. As AIs não me aliviaram muito, pois terminei fazendo algo, cujo resultado final pudesse descrever.
Agradeço quem pode me apoiar financeiramente, faz uma grande diferença, até para desbravar esses temas bicudos, que estão mais para uma criança humana birrenta do que para um carcará. 🦤
Muito obrigada!
Agora quero saber de você:
🧡 Já se apaixonou por algo que não existia? Qual seu caracará de plástico?
🧡 Já se perdeu no bar discutindo se AIs tem alma?
🧡 Você também está na empolgação com meu romance novo?
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Agradeço, em especial, sua leitura 🧡
Apesar da carcará ser de plástico, por uns dois ou três dias ela chocou ovos, voou, viveu e acalentou seu coração. Dar vida às coisas é a nossa vocação. O amor é o que nos move. Quem não sabe o que é amor, só destrói.
ai Ana, eu ri com o desfecho do carcará rs de tudo que poderia dar, eu não imaginei isso. vc encantada com o simulacro e o seu aluno advogado encantado com a simulação 😂 acho que nosso problema atual é que a simulação está entrando na realidade, influenciando-a e alterando muita coisa. eu gosto muito de Her porque exemplifica muito bem uma porção de coisas...bela escolha!
ps: parabéns pelo sucesso do Quimeras e
ps2: VIVA CARGA VIVA! 💫