Embalados com carinho: o pacote de outubro
O falecimento de um crítico. Um conto publicado. Duas leituras de acesso aberto. Uma agenda cheia de expectativa por abraços.
Olá!
Hoje a newsletter, escrita em dia de eclipse, celebra uma pessoa que me influenciou muito (na realidade, duas): Fredric Jameson (e Ursula Le Guin). Jameson foi um crítico, um teórico, um arqueólogo do futuro.
Também separei duas leituras de acesso aberto, uma de não ficção e um conto. Ainda comento de um conto meu publicado na antologia O dia escuro — contos inquietantes de autoras brasileiras. Por fim, aí vai a agenda de outubro.
Queria agradecer quem conseguiu comprar o Ferozes melancolias, meu livro de ensaios sobre o amor e a escrita, com crônicas de viagem, publicado pela Rua do Sabão. Comecei a receber os primeiros comentários de quem leu e está sendo muito emocionante.
Em especial, queria agradecer à Deborah Fortuna, pela bela resenha, na newsletter Uma história em todo lugar, publicada no dia de entrada na primavera: leia aqui.
Também agradeço aos comentários sobre a última edição, A arquitetura da estafa e a insânia artificial, fez sucesso.
Espero que meu apanhado de hoje possa te agradar também. Tudo embalado com a rara sensação de calma e com muito carinho.
Com desejos de uma semana inspiradora para nós,
Ana Rüsche
Fredric Jameson, um arqueólogo do futuro
Já passei por alguns falecimentos na vida. O da Ursula Le Guin foi um deus-nos-acuda. Não deu nem tempo de chorar. Era janeiro de 2018. As pessoas me telefonavam com as dúvidas mais difíceis de elucidar sobre essa senhora californiana, na época, bastante esquecida nestas latitudes. Quantos filhos ela deixou? Ela só teve um marido? A Ursula já esteve no Brasil? Quantos livros ela publicou? Eu não sabia de nada.
Às vezes, tudo o que temos a oferecer é uma pesquisa acadêmica de algumas páginas sobre uma ou duas obras e uma grande admiração, sentimento que não ajuda a tapar buracos. A morte veio varrendo as arestas, com uma força doida para deixar tudo organizadinho. Eu só sabia que a própria autora ficaria brava com a insistência em perguntas típicas sobre papéis de gênero (no caso das dúvidas sobre filhos e marido) e procurava aconselhar para que os textos memorialísticos, escritos a toque de caixa, focassem em outras coisas.
Terminei escrevendo, em tempo recorde, um obituário para O Globo: "Ursula K. Le Guin nos deixou a tarefa de sonhar". Começa assim:
"Falecida na última segunda, aos 88 anos, Ursula K. Le Guin é uma escritora nas corredeiras da contracultura. Californiana, nascida em 1929, foi testemunha pulsante do século XX nos Estados Unidos. Fez de sua obra um diário de acontecimentos da época – Guerra do Vietnã, acordos de livre-comércio, revolução nas telecomunicações. Curiosa, tudo lhe dizia respeito: paz, armas químicas, vida das mulheres, formas de organização social, descobertas de planetas, possibilidades de vida e de felicidade." (leia na íntegra)
Chorei a morte da Ursula só bem depois, durante a pandemia. Foi um período em que essa nossa avó da geração me fazia muita falta. Conversei com outras escritoras, do México, da Turquia, sobre isso. Chorando via Zoom. A gente demora para processar a morte de alguém tão próximo.
No último domingo, fui tomar um café numa livraria bonita com um amigo antigo. Uma livraria equilibrada em uma subida, com um café tranquilo. Nós dois fizemos doutorado juntos. Hoje, meu amigo é professor universitário. No final, na calçada diante das vitrines de livro e do declive do asfalto na rua, ele me solta essa:
— E o Jameson, você viu?
Eu não sabia de nada. O algoritmo prefere me entregar vídeos de roupas estampadas dançantes horrorosas que jamais comprarei a me deixar ficar verdadeiramente triste. Ficamos ali, alguns minutos, comentando as notícias sobre o falecimento.
Fredric Jameson adorava a Le Guin. Daí ser bonito colocar os dois juntos nesse pequeno texto. Iriam ficar felizes e iriam conversar sobre coisas que eu nem compreenderia.
Quem foi Fredric Ruff Jameson, falecido no início da primavera?
Um crítico de tudo, em especial da cultura capitalista. Um marxista conhecido, um materialista bem consolidado na crítica da cultura do pós-modernismo. Estadunidense, nascido em Cleveland em 1934, viveu 90 anos. Na maioria das fotos, se observa um homem branco calvo, com o rosto redondo, de óculos.
Devo ao Jameson muita coisa. Mesmo que ele nem fizesse ideia de quem sou (na pandemia, no máximo fui uma das cabecinhas com a câmera aberta em palestras). Afinal, se esse crítico bem consolidado não tivesse decidido estudar ficção científica, talvez eu não tivesse conseguido justificar a relevância de minhas próprias ideias nos idos de 2009.
O Jameson abriu um campo de trabalho. Arqueologias do futuro: o desejo chamado Utopia e outras ficções científicas é uma obra que mudou minha vida, um livro constituído por um longo ensaio sobre as utopias e depois vários artigos, análises de casos que ele foi publicando ao longo dos anos. Não fui a única beneficiada, claro, muitas outras autorias se serviram dessa sua força para se estabelecer, seja na crítica, seja na literatura. Se hoje contamos com análises tão boas sobre a obra da Ursula Le Guin, tem um dedinho do Jameson nisso.
Ao site A Terra é Redonda, escrevi uma resenha quando o Arqueologias foi publicado aqui, na tradução do Carlos Pissardo, pela Autêntica, em 2022 — o texto começa assim:
“A utopia sempre foi uma questão política, um destino incomum para uma forma literária – e, do mesmo modo que o valor literário da forma está sempre sujeito à dúvida, seu estatuto político também é estruturalmente ambíguo”. Essas primeiras linhas de Arqueologias do futuro, de Fredric Jameson já são capazes de enunciar os principais temas do longo ensaio que abre essa obra fundamental: as relações entre a imaginação, seus limites, e a crítica política imbricadas na literatura.
Arqueologias do futuro é hoje uma obra essencial para a análise sobre obras de ficção-científica (FC) e obras utópicas. A partir da escavação minuciosa sobre questões culturais e políticas de cada período, com fricções próprias a cada tema e autoria analisados, Fredric Jameson foi capaz, com esse livro, de alçar os estudos sobre ficção-científica a um novo patamar de complexidade, oxigenando o campo das utopias e abrindo caminho para outras confabulações possíveis. Como o título sugere no que diz respeito à FC, há que se destrinchar essa grande metáfora central ao gênero, o futuro, a partir de uma mirada rigorosa sobre o passado, colocando-o, em um aparente paradoxo, à frente.” [leia na íntegra]
Falar de nossos mortos sempre é único, pois observamos sua vida também pulsando na nossa. Naquela calçada, num domingo de sol, em frente a uma livraria bonita, não consegui chorar a morte do Jameson com meu amigo. Nem agora quando escrevo para você. Sei que uma hora, essa tristeza me inundará. Mas vamos dar o tempo ao tempo. Neste instante, me sinto honrada por ter estado, ao menos um pouquinho, em sua companhia.
"Coração da aurora": um conto em O dia escuro
Uma alegria contribuir com um conto para este livro tão especial, O dia escuro: as organizadoras, Fabiane Secches e Socorro Acioli, reuniram contos de autoras brasileiras para procurar responder à pergunta "o que nos aterroriza hoje?".
Em específico, meu coração dá uma disparada ao lembrar que foi incluída uma narrativa de Lygia Fagundes Telles no volume, com histórias inquietantes e sombrias.
No meu conto, "Coração da aurora", procurei entregar algo que mesclasse minhas paixões, a potência pelas metamorfoses e a paisagem litorânea.
Começa assim:
"Era no tempo da impermanência. Naquela vila, diziam que o mar comia demais a terra ali, avançava na faixa de casas e não compensava botar dinheiro num lugar que logo estaria embaixo d’água. A menina, uma garota sardenta miúda, não conhecia o próprio pai, e essa era a preocupação mais significativa da vida daqueles treze anos, embora fosse muito comum não ter pai naquele lugarejo, em que conexões filamentosas nunca foram sequer instaladas e a contaminação alta era uma realidade. Os outros seis irmãos, todos homens, ignoravam a ausência paterna com chutes e socos. A garota terminou por aprender o mesmo, moldando-se mais brava do que quieta, insistindo em suas interrogações."
Contribuíram com contos: Amara Moira, Ana Rüsche, Andréa del Fuego, Carola Saavedra, Cidinha da Silva, Dia Nobre, Eliana Alves Cruz, Fabiane Guimarães, Flavia Stefani, Jarid Arraes, Laís Romero, Lygia Fagundes Telles, Marcela Dantés, Maria Valéria Rezende, Mariana Salomão Carrara, Micheliny Verunschk, Natalia Borges Polesso, Natércia Pontes, Socorro Acioli e Trudruá Dorrico.
O lançamento será no dia 31/10, em diferentes cidades brasileiras.
O livro está em pré-venda no site da Companhia das Letras.
Duas leituras
Separei dois textos de acesso aberto:
Conto: "à orla do mundo", de zênite astra
Faço curadoria na área de literatura da Revista Amarello, uma publicação impressa e on-line que traz conteúdos caprichados de artes visuais, design, filosofia e arquitetura, entre outros. Na edição de n. 50 da revista, trouxemos um conto da zênite astra: leia gratuitamente aqui.
Língua como tecnologia: criação de mundos
Saiu o dossiê: II Seminário Viagens da Língua: Língua e Tecnologias, do Museu da Língua Portuguesa. Com acesso aberto, a publicação traz a palestra transcrita que fiz na abertura do evento. Há vários outros textos muito interessantes também: acesse gratuitamente aqui.
Agenda de outubro
Em outubro, espero que você possa me encontrar em algum momento. Nem que seja para um abraço on-line. Aí vão meus convites.
[On-line, 5/10] Filamentos: duas obras brasileiras
Em outubro, vamos conversar sobre as questões ecológicas num clássico da literatura brasileira, Vidas secas, de Graciliano Ramos. Também vamos ler e comentar um ensaio curioso de Euclides da Cunha, "Fazedores de deserto", de 1900.
Neste sábado, 5/10, às 11h, para participar, basta apoiar o projeto no Catarse.
[São Paulo, 2 e 9/10] Sesc Pinheiros, curso de escrita sobre crise climática
"Crise climática e literatura: ensaiar e escrever" é o título do curso que darei no Sesc Pinheiros, começa hoje, das 19h às 22h. Inscrições.
[São Paulo, 4/10] Mostra Ecofalante: Cinusp
"Do poema ao cinema: da Máquina do mundo, de Drummond, à catástrofe da Lavra" é o título do debate que haverá depois da exibição do filme Lavra (dir. Lucas Bambozzi). Estarei com Giovane Direnzi e Gisele Mirabai. A atividade faz parte da VII Mostra Ecofalante USP e a Agenda 2030, fruto do Acordo de Cooperação Técnico-Educacional entre a Organização da Sociedade Civil Ecofalante e a USP. Entrada franca. Das 13h às 16h. O Cinusp fica dentro da Cidade Universitária. Mais informações
[Campinas, 23/10] Encontro de divulgação de Ciências e Cultura
Estarei no 11º Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura (EDICC), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Participo da mesa "As mudanças climáticas sob uma perspectiva de gênero, latino-americana e decolonial". 23/10, das 17 às 19 horas, presencialmente no Labjor, Unicamp, Campinas [programa completo].
[Rio de Janeiro, 25 e 26/10] Festival Futuros Possíveis, da Firjan
Darei a palestra "Entre incertezas e esperanças: Ficção científica, imaginação e crise climática". A programação está muito boa, estou animada para tomar milhões de notas.
Mais uma Flip! Se estiver por lá, venha me dar um abraço
Chegou a Flip. No Ferozes melancolias, escrevi toda uma longa crônica sobre essa experiência ambígua de estar, por tantos anos, perambulando nessa festa literária, uma das mais relevantes do país. Sempre volto com muitas coisas na bagagem, em especial, histórias.
Não sei como vão ser os tropeços das pedras este ano, mas estou animada, com grandes expectativas, inclusive por amigas que vão pela primeira vez; com saudades das montanhas, de ver os caranguejinhos no mangue, de cheirar mofo e maresia no quarto. Desejo encontrar pessoas que adoro, que admiro. Vontade de comer doce de tabuleiro sem moderação e de receber abraços.
Na casa Escreva, Garota!, vamos conversar sobre newsletters na seguinte mesa:
Quinta-feira, 10/10, 20h | Da newsletter ao livro. Com Ana Rüsche, Gaía Passarelli e Taís Bravo. Depois vamos ao bar. Travessa Gravatá, 56, Centro Histórico, Paraty.
Também mediarei duas mesas na Casa Sete Selos, projeto coletivo das editoras Âyiné, Bazar do Tempo, Carambaia, Círculo de Poemas, Cobogó, Fósforo e Ubu; com Megafauna, Gama e Supersônica:
Quinta, 10/10, 15h | Fantasia e terror à brasileira. Com Luiz Antonio Simas (Bazar do Tempo) e Oscar Nestarez (Fósforo e Carambaia). Mediação: Ana Rüsche
Sábado, 12/10, 15h | Crônicas urbanas: João do Rio, Júlia Lopes de Almeida, Zicartola. Com Anna Faedrich (Bazar do Tempo), Graziella Beting (Carambaia) e Maurício Barros de Castro (Cobogó). Mediação: Ana Rüsche
Sobre esta edição
Para produzir esta newsletter foram necessárias três horas para escrever o texto sobre o Fredric Jameson, mas foi necessária mais uma hora só para recolher as informações picadas sobre a agenda e as organizar. Tudo isso só porque gostaria muito de receber abraços de carne e osso em outubro. Será que consigo?
Durante uns meses bem desafiadores, que foram agosto e setembro, consegui manter a publicação existindo por conta dos apoios recebidos, o que me traz uma profunda alegria.
E por isso, deixo meu imenso muito obrigada.
Sem vocês, não haveria energia suficiente.
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Gracias!
Agradeço a leitura. Já comecei a escrever a próxima edição, uma pesquisa que já me tomou tempo, mas estou bem animada com ela. Assim, não deixe de se inscrever.
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Em 2024 e em todos os dias,
todo poder à alegria,
ao desejo e
à imaginação!
Aprendo sempre tanto com você! <3
news maravilinda!! Obrigada, Ana!!!