O mergulho no desânimo. E um respiro
Janeiro, um mês de duas faces. O cultivo da esperança em alguns momentos. A bonita história, conversas sobre literatura e ecologia.
Olá,
Esta é mais uma edição da Anacronista. Para abrir o ano, vim contar sobre os bastidores de um de meus projetos mais bonitos, o Filamentos, a respeito de ecologia e literatura.
Escolhi tratar desse projeto que me enche de alegria por estar contaminada por um momento de desânimo.
A esperança é uma espécie de cultivo exigente, aguada aos pouquinhos.
Sem a qual o passar dos dias perde seus pontos de vida.
Com amor,
Ana Rüsche
Momentos de desânimo
Ainda não sei bem o que me disseram as cartas de tarô tiradas no início de ano. Uma das cartas foi a Justiça, com espada e tudo. Até dezembro, descobrirei o que significa, quando o ano já estiver escrito.
Enquanto isso não acontece, janeiro, esse mês nomeado em homenagem a Janus, o deus de duas faces, a que olha ao passado e a que olha ao futuro, veio desanimador, como se as duas pontas do tempo trouxessem pesadelos emergindo à superfície. Em especial, o gesto nazista.
Fiquei deprimida nos últimos dias, magnetizada pela avalanche digital, abrindo o celular e rolando a timeline infinita. Procurei lidar com esse fluxo de paralisia fazendo caminhadas longas, furando esse mês aguaceiro. E se digito agora para você essa carta, é porque contei com a rede de apoio a essa humilde newsletter. E com a amizade, esse tipo humano de amparo que gostaria de transmitir.
Os áudios calmos de vozes amadas que ouvi tricotando na sala imersa na penumbra do pôr-do-sol. A presença física ao redor da mesa de café, com gente cruzando municípios para compartilharmos a tarde e o bolo de cenoura, uma iguaria trazida de ônibus, equilibrada no colo, sem esquecer a calda de chocolate no tupperware. As coisas que importam, a matéria do mundo.
É difícil nutrir esperança, eu sei. Admitir o desânimo, às vezes, faz parte desse esperançar.
No Sul Global, o cultivo da esperança é uma necessidade vital, o exercício diário praticado por gerações. Uma forma dos pensamentos respirarem. E honrando as pessoas que nos sonharam no passado, sinto que preciso me levantar aos poucos, escutar o mundo, com sua intoxicação em cantos de plástico. E deixar que a mudança me afete, que a voz do desânimo me guie a lugares sombrios, nos quais não gosto de mergulhar. E submergir uma vez mais envenenada, um monstro de tinta e gosma. Até a troca de pele terminar.
Uma hora, o eterno rascunho recomeça. Afinal, é o que sei fazer.
E aqui estamos outra vez.
A partir disso tudo, decidi hoje falar sobre o projeto Filamentos. Um projeto que me ajudou a sair da pandemia e de momentos críticos de imobilidade. Há três anos, uma vez ao mês, abrimos o Zoom para conversar sobre a crise climática e o Antropoceno, nossa época sombria que já tem “antro” no nome.
Foi também o que me ajudou agora. Afinal, o planeta possui uma pequenez específica. É menor do que imaginamos. Nosso único planeta. E olhar para as nuvens, mesmo quando carregadas de cinza, me faz lembrar o essencial.
Como é bonito respirar.
Tudo começou, pois não eu tinha com quem conversar
Você sabe, muita coisa é cultivada num café entre duas mulheres. Há três anos, numa conversa entre xícaras e pires, a Sandra Abrano, editora da Bandeirola, se animou a publicar um livro meu, uma obra teórica a respeito de meu pós-doutorado em curso, mudança climática, ecologia e literatura.
Meu maior receio era colocar o livro no mundo e não ter ninguém para o ler. Imagina, desapontar a Sandra? Mas além de alguns amigos, que não encheriam os dedos de uma mão, com quem mais conversar sobre isso?
Daí tive uma ideia maluca, de criar um grupo de estudos aberto. Afinal, já sabia bem quais seriam os temas abordados no pós-doc, poderia seguir o índice da pesquisa.
Abrimos um projeto no Catarse, nossa expectativa era bem modesta. Só que não imaginávamos que havia um desejo de conversar sobre isso tudo do outro lado, a catástrofe climática, a ansiedade com a mudança, o desgoverno geral, a perda de paisagens.
A coisa pegou. Desde o início do projeto, decidimos que professores poderiam participar de forma gratuita, uma categoria muito afetada pela pandemia. O ensino, a base de tantas coisas na sociedade. Assim, qualquer pessoa que desse aula, em atuação ou momentaneamente desligada, poderia estar junto de forma gratuita. Também estabelecemos diferentes níveis de apoio, pois no pós-pandemia para muita gente a vida não era simples.
Três anos depois, temos uma pequena comunidade filamentosa. Integrantes são estudantes do ensino médio ou já são docentes aposentados de universidades. As formações são muito diferentes umas das outras, da Geografia à Economia, da Engenharia à Zoologia. Sinto uma alegria especial antes de abrir o Zoom, esse pequeno portal.
Três anos depois, um livro e um efeito colateral
O livro foi escrito. Vai se chamar Quimeras do agora: literatura, ecologia e imaginação política no Antropoceno. Trata-se de um livro de teoria literária e ecologia, discuto utopias e a ampliação de horizontes políticos, em contraste com distopias, ecocídio e colonialismo. O prefácio é de um integrante do grupo, um escritor de obras lindas, Marcos Rodrigues, professor de Zoologia da Universidade Federal de Minas Gerais. O livro foi escrito para uso no ensino superior, passando pela conceitualização do que seja o Antropoceno e análise de obras literárias.
E o grupo teve um efeito colateral, um segundo livro com outro caráter. Uma ideia brilhante da Sandra em reunir todas as newsletter enviadas e outros materiais do grupo num guia de leitura: Filamentos: leituras ecológicas comentadas. Condensamos 22 meses de conversas, com 60 horas de encontros, com a participação de mais de 120 pessoas e são comentadas 45 obras que tratam do tema, de Donna Haraway a Rachel Carson, de Thomas More a Malcom Ferdinand, de N. K. Jemisin a Olga Tokarczuk e Clarice Lispector. É um livro abrindo portas a outros livros.
A editora Bandeirola trabalha com financiamento coletivo e logo estará aberto o apoio a esses lançamentos. Para saber mais, https://www.catarse.me/antropoceno.
Convite: evento para quem quiser vir
Amanhã, sábado, 25/1, das 11h às 13h, teremos mais uma edição do Festival Filamentos, uma atividade gratuita e aberta.
Contaremos com as presenças de André Cáceres, Eduardo Fernandes, Paula C. Carvalho, Thiago Ambrósio Lage e, claro, da Sandra Abrano.
Vamos conversar a respeito de criar coleções de livros, celebrando a coleção Ensaio e Crítica, da editora Bandeirola, e também sobre a importância de cultivar comunidades, laços reais que criamos na era das AIs e dos algoritmos, dentro do tema ecológico. Não imaginávamos que a conversa toda seria tão alvissareira.
Para participar gratuitamente, basta se inscrever no Sympla.
O que ler? Algumas sugestões
Nosso programa de leituras do semestre do projeto está definido e talvez alguma obra ajude em momentos de desânimo Se quiser estar conosco, basta apoiar o Filamentos no Catarse. Mas quem sabe você não tira alguma ideia da lista abaixo?
A curadoria é minha, mas feita a partir de muitas sugestões de leituras de integrantes do grupo. Também tive uma boa contaminação de uma disciplina inspiradora que curso na UnB, sobre literatura e plantas.
8 de fevereiro de 2025, das 11h às 13h em Brasília
O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade, de David Graeber e David Wengrow. Tradução de Claudio Marcondes e Denise Bottmann. Vamos conversar sobre as páginas 1 a 184.
“Meu tio o iauaretê”, conto de Guimarães Rosa
Convidado: Eduardo Socha. Filósofo e editor. Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa na Freie Universität Berlin; mestre em Filosofia pela USP. Editor na Quina.
8 de março
O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami, de Hanna Limulja
“Voladoras”, conto de Monica Ojeda, do livro Voladoras, tradução de Silvia Massimini Felix
5 de abril
O pensamento vegetal: A literatura e as plantas, de Evando Nascimento
Água viva, de Clarice Lispector
3 de maio
A vida secreta das árvores: o que elas sentem e como se comunicam, de Peter Wohlleben, tradução de Petê Rissatti
“O dilúvio” e “O instante da açucena”, contos do livro Alameda, de Astrid Cabral
7 de junho
A vida das plantas, uma metafísica da mistura, de Emanuele Coccia, tradução de Fernando Scheibe
Migrantes, de Issa Watanabe
Convidada: Marcia Moura Coelho. Psiquiatra, analista junguiana pela Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e International Association of Analytical Psychology (IAAP). É analista de treinamento e supervisão do Instituto de Formação de Analistas da SBPA. Na SBPA também coordena o Núcleo: Sonhos, Literatura e Psicologia. Autora do livro Lirismo, melancolia, poesia (Appris, 2020).
Para produzir essa newsletter
Foram necessários quatro dias de ruminações e muitas horas de redação. Dessa vez, não sei precisar quantas.
Queria agradecer novamente quem apoia financeiramente a newsletter.
Se venci o mergulho do desânimo, isso possui muita relação com essa generosidade específica.
Meu muito obrigada novamente 🧡
Para apoiar a Anacronista: https://apoia.se/anacronista
Agradecida!
Obrigada pela leitura. Tudo só faz sentido, pois você está do outro lado.
Canais
Telegram: https://t.me/criatividade
Instagram: @anarusche
Se eu pudesse, pegava o busão e corria aí com um bolo de cenoura e a minha cestinha de tricô! Obrigada pelo texto sobre o desânimo (bateu aqui também com aquela saudação supremacista), e obrigada pela respiração da Filamentos que o seguiu. Super curiosa pra ler estes livros que tão vindo aí.
às vezes, é bem difícil manter firme a esperança. mas a gente segue tentando...