Como o silêncio soa na página?
Se a literatura é a arte de dizer o mundo, como representar o silêncio? Ainda, seleção de obras sobre literatura e crise climática.
Olá!
Hoje meu tema hoje é o silêncio. Se a literatura procura representar o mundo, como representaria o irrepresentável? A partir de exemplos da poesia e da prosa, vamos conversar sobre esse ambíguo presente divino.
Se você procura saber mais sobre crise climática, compartilho a lista de leituras do Filamentos do próximo semestre. Também conto que estarei n'A Feira do Livro, no Pacaembu, em São Paulo.
Para quem gosta ou precisa escrever, em julho, estão abertas as inscrições para meu curso de férias: Prática de Escrita — intensivão on-line. Será de 1 a 15 de julho, das 8h às 9h30. Já recebi inscrições e tenho certeza que será perfeito para desengavetar o mundo. Venha! Detalhes aqui
Agradeço a sua leitura da Anacronista!
Sou muito grata a tudo o que essa newsletter me proporciona e sempre é um prazer furar o tempo dos prazos para entregar este texto a você. Procrastinamos com classe ;)
Com amor,
Ana Rüsche
Silêncio, um presente ambíguo
Se os deuses existirem, certamente nos presentearam com o silêncio. Necessário para organizar as ideias. Precioso para ordenar a confusão das coisas em batimentos cardíacos. Como todo presente divino, pode ser torcido e se tornar terrível ou aflitivo em alguns contextos — quem nunca sonhou estar abrindo a boca e nada sair dela? O silêncio, o imenso que antecede os momentos cruciais da vida.
Decidi tratar do tema, pois é algo que nos falta de forma recorrente. Como bem diz o meme, basta você parar para escrever ou se concentrar diante de uma leitura que a sinfonia de tudo ocorre: a furadeira do vizinho de baixo, a serra da obra na rua (quando não é a britadeira), o interfone, o choro da criança pedindo atenção, o latido do cachorro brigando com o gato, alguém perguntado o que tem para jantar hoje, uma voz perguntando se você viu o controle, o alarme do carro disparado na rua e [escolha um som intrusivo].
O silêncio também não é sempre agradável. Muitas vezes, nos devolve a nossos próprios pensamentos. Para driblar essa afronta mental, vivemos abusando de podcasts, playlists e fones. Afinal, quem quer se conectar consigo mesmo, não é?
Ironias à parte, sou profundamente apaixonada pelo silêncio. Escolhi três exemplos bonitos quando a arte conversa a respeito do que não possui voz. Ou possui, como veremos.
Traduzir o que não possui som
Na poesia, o silêncio é constitutivo. Os versos fazem do silêncio sua busca pela forma, como alcançar o que escapa? O que escorrega? A pausa constitui a poesia como a força da gravidade constitui o voo.
Para exemplificar, vale ler em voz alta um maravilhoso poema da nossa contemporânea Mercedes Roffé (Buenos Aires, 1954), na tradução de João Amando. A primeira vez que tive contato com esse poema foi num festival de poesia em Nova York, paixão à primeira ouvida que compartilho contigo. Veja como a palavra "escândalo" acrescenta um respirar fundamental, a imponência do tom oracular. O fecho é cravado em nosso coração a partir do silêncio:
Dobrando uma aposta silenciosa, penso muito ainda no exemplo do Stéphane Mallarmé (1842-1898). Um parisiense que revolucionou ideias na poesia, abrindo uma caixa de pandora das possibilidades tipográficas com sua ambição e cavanhaque fabulosos. Publicou o antológico poema "Um jogo de dados" ("Un Coup de Dés Jamais N'Abolira le Hasard") em 1897, explorando, entre outras questões, a representação do silêncio. E num lugar bem difícil: na página do papel.
A partir do mote "um lance de dados jamais abolirá o acaso", o Mallarmé faz, na poesia, uma declaração paradoxal sobre a impossibilidade do que o poeta acabara de fazer. Observe como a poesia representa o silêncio na página e concede um ritmo às suas frases, uma página na tradução de Álvaro Faleiros:
O próprio poeta sabia o que fazia, misturando a noção de pauta musical à tipografia, embora ainda se sentisse inseguro, como revela nesse trecho:
"Hoje ou sem presumir o futuro que sairá daqui, nada ou quase uma arte, reconheçamos facilmente que a tentativa faz parte, com imprevistos, de investigações particulares e caras a nosso tempo, o verso livre e o poema em prosa. Sua reunião se cumpre sob uma influência, eu sei, estrangeira, a da Música ouvida em concerto; na qual encontram-se vários meios que me parecem pertencer às Letras, eu os retomo." (MALLARMÉ, 2013, p. 82)
No Brasil, contamos com traduções, robustas e bem pensadas desse poema, feitas por Haroldo de Campos (1974) e Álvaro Faleiros (2013), esta última publicada pela Ateliê, da qual tirei as citações.
Aliás, o poema está em domínio público e, caso queira se arriscar a meditar sobre tudo isso, vale se divertir e procurar traduzir uns trechos. O exercício de tradução, acompanhado da leitura em voz alta, é essencial para entendermos melhor como os poemas soam no mundo. Principalmente quando nos calam.
O silêncio da proibição
Na prosa, o silêncio também possui seu papel. É mágico quando observamos personagens que dizem tanto ao pronunciarem um nada. Ou quando o silêncio sugere que imaginemos o que a literatura não daria conta (o mundo real sempre é mais triste e impensável do que a ficção).
Um dos usos bem frequentes do silêncio, em estratégia típica da prosa, é mostrar o silenciamento de minorias. Impossível não recordar d'O conto da aia, da canadense Margaret Atwood (1985), no qual as mulheres vão perdendo assustadoramente seus direitos. Um deles é o direito de ler e escrever. Assim, o silenciamento é tematizado de várias maneiras — as aias são obrigadas a usar uns ícones para fazer compras e um dos atos de rebeldia da protagonista é ler uma revista feminina. No romance, as bibliotecas tornam-se raridades e todas controladas, algo que a escritora vai explorar em seu recente retorno à Gilead, Os testamentos (2019), no qual descobrimos que a temível Tia Lídia ainda teria o acesso à leitura.
* * *
Foram esses meus centavos a respeito de silêncio na página do papel. Espero que tenham sido inspiradores. Agradeço a quem participou do Encontrinho de maio e junho. Me deram ideias significativas a respeito do tema.
Referências dos poemas: MALLARMÉ, Stéphane. Um lance de dados, trad. Álvaro Faleiro. São Paulo: Ateliê, 2023; e ROFFÉ, Mercedes. As lanternas flutuantes, trad. João Amando. São Paulo: Lumme Editor, 2019.
📚 Crise climática: ideias para leitura
Compartilho a lista de leitura do Filamentos, projeto de leitura e discussão sobre ecologia que mantenho com a editora Bandeirola.
Encontros on-line aos sábados, das 11h às 13h
10 de agosto: A Convenção dos Ventos, Ana Primavesi (Expressão Popular), e Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno, de Bruno Latour (Bazar do Tempo).
21 de setembro: Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin (Aleph), e O acontecimento Antropoceno: A Terra, a história e nós, não ficção, de Christopher Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz (Quina).
5 de outubro: Vidas secas, de Graciliano Ramos (várias edições), e "Fazedores de desertos", artigo de de Euclides da Cunha.
9 de novembro: Visão das plantas, de Djaimilia Pereira de Almeida (Todavia), e O Antropoceno: sobre modos de compor mundos, org. Stelio Marras e Renzo Taddei (Fino Traço), artigos selecionados
7 de dezembro: Escute as feras, de Nastassja Martin (34), e Um estranho tão familiar: Teorias e reflexões sobre o estranhamento na ficção, de George Amaral (Bandeirola)
Para participar do Filamentos, basta apoiar o projeto: https://www.catarse.me/filamentos2024
📚 Sorteio: Depois do fim
O livro a ser sorteado em julho entre os apoiadores da newsletter será: Depois do fim: conversas sobre Literatura e Antropoceno.
Organizado por Fabiane Secches e publicado pela Instante (2022), o livro traz textos de Ana Rüsche, Aurora Bernardini, Christian Dunker, Daniel Munduruku, Fabiane Secches, Giovana Madalosso, Itamar Vieira Junior, Maria Ester Maciel, Micheliny Verunschk, Natalia Timerman, Paula Carvalho, Paulo Scott, Tulio Custódio. Participo com um ensaio sobre a Ursula Le Guin e a perda de paisagens, a partir da leitura de Floresta é o nome do mundo.
📚 Em maio, o sorteio foi de um exemplar de Exploração, de Gabriela Wiener (Todavia); em junho, será de Manual de sobrevivência na escrita, de George Amaral e meu (Bandeirola).
São Paulo: A Feira do Livro
Estarei em duas ocasiões n'A Feira do Livro, que acontece na Praça Charles Miller, Pacaembu. Adorei o evento no ano passado, comi muito sorvete e abracei pessoas queridas. Venha me dar um alô:
Literatura e Antropoceno: domingo, 30 de junho, 16h
Estarei no Tablado literário, com Rodrigo Petrônio e Tiago Novaes
O convite veio da editora Rua do Sabão, com a qual lançarei o livro de ensaios Ferozes melancolias no próximo semestre.
Escrever: sábado, 6 de julho, 16h
Estarei no estande da Bandeirola, acompanhada do George Amaral para conversar sobre escrever. Vamos fazer algumas práticas e conversar sobre nosso "Manual de sobrevivência na escrita". Também vamos abordar como escrever, inclusive, sobre ecologia.
📖 "Na Era do Fogo" chegou à Coreia do Sul
Um conto meu, originalmente publicado na série Botão Vermelho, uma parceria do Suplemento de Pernambuco e o Instituto Serrapilheira, será publicado em inglês na premiada khōréō magazine — revista sul-coreana especializada em ficção especulativa com o enfoque em imigração. Além de textos, também produzem podcasts.
Abordando o tema dos vulcões, o conto foi escrito a partir das pesquisas da geóloga brasileira Adriana Alves (leia mais aqui). Sairá em setembro, bem pertinho do meu aniversário. Estou muito feliz que esse conto chegará ao outro lado do planeta.
📘 Sincrônicas
Praça Clóvis
Não deixe de assinar a newsletter do Praça Clóvis! Trata-se de um mapeamento crítico da literatura brasileira dos últimos 50 anos. Esse projeto de pesquisa pretende reunir textos críticos sobre romances brasileiros publicados desde os anos de 1970: https://pracaclovis.substack.com/about
Silêncios especiais
Indico vivamente a edição do maravilhoso Sofá da Surina # 73 — Silêncio, da Mariana Surina.
🤖 Inteligência artificial: experiências estranhas e ameaças reais
O próximo Encontrinho da Anacronista será na terça, 2 de julho, às 18h30.
Vou conversar sobre um tema tão quente quanto gelado: a Inteligência artificial.
Falarei de um debate que presenciei na última WorldCon na China, das minhas experiências bizarras durante a pandemia, da falta de inteligência geral e de algumas ameaças reais e outras imaginárias desses seres desprovidos de corpo.
Todas as pessoas estão convidadas, basta se inscrever: https://forms.gle/2jswmd6K588Wp8rq7
(quem já se inscreveu, não precisa se preencher novamente)
Sobre esta edição
Para produzir esta newsletter foram necessárias 4 horas de redação, dois Encontrinhos para ouvir as pessoas, 4724 passos caminhando remoendo e muita enrolação na frente do computador. Ainda um almoço no quilo da esquina, tinta vermelha de caneta e três folhas de papel com estampa de gatinhos dormindo. Agradeço a quem realizou apoios para possibilitar essa empreitada.
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Curso de férias: Prática de Escrita — intensivão on-line
1 a 15 de julho, das 8h às 9h30
Desengavetemos a vida! inscreva-se aqui
Muito obrigada!
Agradeço sua leitura silenciosa do outro lado.
Que a gente possa prestar atenção na força da pausa.
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eu gosto muito do silêncio, ele é meu motor para escrever <3
Que edição maravilhosa amiga. Muita vontade de fazer seu intensivão. Lov u.