Como aprendemos a andar: a dor e os exercícios físicos
Corpo e persistência: das lesões bestas aos eletrodos da fisioterapia.
Olá,
Olha só, hoje não estou procrastinando! Ao contrário, digito furiosamente e atrasada para não perder o bonde do newsletteraço sobre exercícios físicos (e ainda quero ir almoçar com uma amiga). No final, há os links das outras newsletters participantes.
Não é um assunto novo aqui. 
Já escrevi sobre “os domínios da maromba” há dois anos, uma edição que me rende comentários ao vivo até hoje.
Também há o inesquecível especial, texto feito em coautoria com o Thiago Ambrósio Lage, sobre “qual dinossauro é você na academia“ (desde o Jurássico, não se fala de outra coisa!).
Hoje escolhi falar de se lesionar e retornar. Afinal, fazer exercícios é igual escrever. 
É na insistência que a mágica acontece.
E o de hoje? Tá pago.
Com foco, força e fábula,
Ana Rüsche
Como aprendemos a andar: a dor e os exercícios físicos
Pulso, a canção da inocência
Em algum momento no começo deste ano
Leio a newsletter de um escritor que voltou a nadar. Como eu, passou dos quarenta há um tempo. A leitura me deu certa alegria, também eu voltava a correr. Um ano antes, havia lesionado o tendão clássico, o da Guerra de Tróia, derrubou Aquiles.
Não foi grave, poderia ter rompido, afirmou o ortopedista do convênio, pois não foi ele que ficou depois pedalando por oito meses uma bicicleta ergométrica. Chato demais no início. Com as voltas do pedal, a chatice se dissolveu em hábito.
Na sequência, contudo, aconteceu algo mais irritante, um escorregão ridículo, dia de chuva, um espacate involuntário num piso liso. A dor fora a de rasgar por dentro, quem aguenta mais uma lesão?, mas não foi nada grave, afirmou o ortopedista do plantão, pois não foi ele quem pagou depois as vinte sessões de fisio, o tempo se dissolvendo em macas azuis, nesse moinho do metálico, a roda, a rodar, até que termine.
Um dia passa.
Botando os fones, estou no asfalto novamente. É dia de treino. 
Olhando o horizonte, aperto o botão do reloginho e piso.
Aprendi, a gente volta, pois se esquece da dor.
Eletrodos e a canção da experiência
Em algum momento do ano passado
Estou deitada de barriga para baixo, alguns dias após meu episódio de espacate involuntário. Ainda manco. Deitada desse jeito, a pressão da lycra do top contra meu peito ficava mais incômoda, assim, procurei aliviar o peso numa postura mais confortável, apoiando a bochecha na cama. O perigo era dormir, imagina babar em público? Ao meu redor, o mar de azul do estofado sintético. Nas minhas costas, eletrodos. No meu quadril, magnetos. Não era a única ciborgue da sala. Mais uma sessão. Pelos meus cálculos, ainda faltavam umas quatorze.
Mas olha, não havia o que reclamar. Tive uma sorte tremenda: encontrei uma clínica maravilhosa perto de casa. Não me deixavam fritar nos choquinhos. Ao contrário, quase uma hora de sessão, com direito a exercícios de fortalecimento. Encontrei-a colocando “clínica de fisioterapia” no GoogleMaps, meu anjo da guarda deve ter assumido os teclados.
Minha relação com esse tipo de profissional é antiga. Aos sete, fiz ginástica respiratória num projeto social, um tipo de fisio para asmáticos, basicamente aprender a expirar em momentos de crise (o corpo quer sempre puxar o ar para dentro, então, aprendemos a fazer o contrário). Aos trinta e muitos, escrevi um livro,* no qual a protagonista é uma fisioterapeuta.
Para quebrar a monotonia, não dormir e não babar, observava atentamente meus companheiros de estofado azul. Corpos muito musculosos, lesões bem complicadas. A idade era uma só: passou dos quarenta.
O fisioterapeuta, macas adiante, começava a preparar algum tipo de procedimento para um homenzarrão. Ao que tudo indica, o moço praticava um tipo de luta e o problema era ombro. Discorriam sobre golpes que não consigo descrever. O procedimento ia começar. Começou. O fortão gemeu, depois uivou como um cachorrinho. O fisioterapeuta, tão seco quanto longilíneo, abanou a cabeça:
— É tudo assim. Quanto pior a cara de mau, mais chorão.
O homenzarrão não teve energia para rir, assim, riram por ele ao redor. Calculei que era melhor dormir babando em público do que passar aquele tipo de constrangimento, ficar gemendo de dor com aquele tamanho todo, depois de contar vantagem sobre golpes de luta. O fisioterapeuta seguiu palestrando, meio que para si, meio que para a plateia nas macas azuis:
— Apliquei a mema coisa na Fernandinha, agora cedo. A moça tava nem aí, rolando a tela do celular.
O homem ganiu baixinho. No final, até eu torcia para que o troço acabasse logo, coitado do moço, ao que o fisio sentenciou:
— Mulher tem muito mais resistência.
Parecia uma frase feminista, mas de meu peito esmagado, sabia que não era bem assim. Quando a gente fica muito tempo de barriga para baixo, aprende-se muito. Fora ali que eu tinha aprendido tudo sobre a carreira do Neymar (não sabia nada antes, para o espanto generalizado). Das macas azuis, discutir política era proibido e o futebol onipresente restou como o único assunto viável ao amálgama auditivo. Um tipo específico de testosterona pairava no ar, com pacientes chegando de motos grandes e fãs de luta. Talvez esse hormônio garantisse que a clínica fosse séria?
Noutra sessão, o fisioterapeuta me contou o que fazia:
— Cuido da dor.
Contei para ele espantada: escrevi quase a mesma coisa num livro!, mas não pareceu acreditar. Pacientes falam muita besteira.
O procedimento terminou. Liberado, o homão parecia mais que aliviado, parecia até feliz, orgulhoso, recobrindo o peitoral. Terminado o show, os outros pacientes passaram a discutir o seguinte problema.
— Como as pessoas aguentam esperar a largada nas maratonas de países frios?
Eu não fazia a menor ideia. Cada um dava um palpite a partir de postura incômoda e paralisada por algum metal. Um senhor explicou melhor a questão: se você fez um tempo ruim, ficava ali igual um picolé aguardando sua vez para largar. Outro fortão completou, imagina, ficar cinquenta minutos esperando a dois graus? Novamente eu não fazia a menor ideia. Será que as mulheres levariam vantagem? Não contribuí, ficava ruim falar com a bochecha no estofado. Mas era gostoso ouvir. Ninguém ali parecia apto a enfrentar aquele tipo de coisa. Todo mundo deitado em azul. Me lembrei de um verão, era jovem, fui tentar ler A montanha mágica no original, todo mundo deitado no livro, todo mundo com problemas pulmonares nos Alpes; em pleno verão, na praia, comecei a sentir sintomas, lembrei da ginástica respiratória e, quase sem ar, larguei o livro maldito. Não me arrependo. O tititi sobre maratonas congelantes seguia solto. Problemas imaginários para situações imaginárias. O poder da ficção.
O fisioterapeuta passou pacientes em revista, mudando a posição das chapinhas metálicas. Daí deu seu acréscimo à conversinha:
— O povo fica ali porque a gente esquece de como foi. Senão, ninguém iria aprender a andar. Andar é cair, se esborrachar. Todo mundo aqui não sabe andar?
Chegou até minha maca e repetiu alto, para quem quisesse escutar:
— A gente esquece da dor.
Sincrônicas: outras newsletters falando hoje sobre exercícios físicos
Tá Todo Mundo Tentando: malhar. Você fala “treinar”, “malhar” ou “puxar ferro”?, da Gaía Passarelli
Correr e coçar é só começar? 🏃🏽♀️três perguntas e respostas para iniciantes, da Paula Maria
O corpo que aprende, sobre o corpo gordo, o exercício físico e a máquina que mantém a mente (mais ou menos) sã, da Camila Perlingeiro
Mergulho: corpo, movimento, performance, unidades de água, da Mariana Moro
Yoga e o que o corpo guarda — minha história com a yoga: Do Youtube à Rishikesh, na Índia, da Lalai Persson
Anacrônicas
Dentesguardados #25 Voltas. Piscinas e CDs, do Daniel Galera, de janeiro, é a newsletter a que me refiro no texto.
Lembrei ainda deste texto bonito, da Carol Bensimon: Nevoeiro #32. Jogar tênis; amigos aos 40; Zonas Azuis.
A montanha mágica é um romance de Thomas Mann.
* Livro: A telepatia são os outros
Para ler meu livro com uma fisioterapeuta de cinquenta anos que parte para uma viagem, você pode acessar o e-book aqui ou comprar em sebos. Os livros físicos novos estão esgotados.
O livro foi finalista do Jabuti e publicado na Itália. 
A forma mais barata de viajar ao Chile.
Ilustrações
Foi o que tinha no caderninho. Estou orgulhosa, pois encontrei uma de vestiário de academia (que tipo de gente faz um desenho do vestiário depois do treino? Não responda).
Sobre esta edição
Revirei meus arquivos e digitei tudo de uma vez só. Assim, desculpa qualquer errinho mais crasso que o normal.
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Agradeço a leitura!
Obrigada por estar aqui, fazendo uma sessão de fisio imaginária comigo.
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Qual dinossauro é você? O Jurássico na academia de ginástica 🦕
Olá, Esta é uma edição especial da newsletter: uma colaboração entre a Anacronista com a Mercúrio em Peixes.
Nos domínios da maromba
Olá! Tudo bem por aí? Hoje trago uma crônica sobre musculação e academias de ginástica. Culpo um voo muito atrasado por essa edição, pois comecei a rascunhar e praticamente terminei o texto numa poltrona apertada.






Adorando essa série de newsletter 💛 essa semana mesmo eu estava falando com amigas, também mães de criança e bebê e soltei a mesma frase do fisio e do seu livro "a gente esquece da dor. Se não, nem a pau que as mulheres teriam um segundo filho". Dor do parto, dor do pós, dor nas costas, nos seios, o corpo todo pedindo trégua porque não dorme. Adorei ler seu relato!
A sua experiência na maca azul me lembrou a vez que precisei fazer fisioterapia pq cai de bunda nas pedras da cachoeira. Detalhe, eu estava na parte seca, com bota de trilha, no primeiro dia da minha primeira viagem de 3 dias para fazer trilhas!
Fiquei com um hematoma preto na bunda, tomei remédio todos os dias para fazer trilha e depois precisei da fisi. Eu deitada de bruços na maca tomando choquinhos na bunda e conversando com um atleta olímpico de atletismo (!!!) me senti tão rídicula pela dor na bunda e pela escorregada que tomei rs