A linha e o centro de Porto Alegre: três viagens
Águas e sonhos. Delírios com cobras, com o risco. Relato de uma cidadã do passado.
Olá!
Esta é mais uma edição da Anacronista. Conto sobre três viagens para Porto Alegre, uma memória estranha de infância e um sonho reptiliano.
Demorei mais de seis meses para publicar essa edição e estou fazendo justo hoje, numa sexta-feira quando deveria estar fechando outro texto. Mas acordei já com vontade de terminar este aqui. Assim, vamos seguir o lema, “procrastinemos com classe” ;)
Com amor, irresponsabilidade e delírio,
Ana Rüsche
Respirar na espinha da linha
Dedos cor-de-rosa no saguão do aeroporto
Era uma tarde de novembro de 2024. Me rendi às pipocas na sala de embarque, muito tempo de conexão. Enquanto procuro carregar meu celular numa disputada tomada no aeroporto, ouço as muitas preposições usadas nos microfones, as que anunciam os voos e os destinos: “com sua atenção, passageiros do voo", “pela atenção, passageiros do voo”. Gostaria de usar um daqueles microfones para testar outras possibilidades, “até sua atenção", “diante de sua atenção”.
Mastigando a guloseima rosa no saquinho, que tingiu meus dedos de uma cor infantil, faço ainda apostas, “será que aquele cara está escutando música ou podcast?". Com certeza é música, pois observo um leve tamborilar de dedos na cadeira. Ou seria só impaciência? Observo uma mulher irritada apressando o passo, procurando ultrapassar outras mais lentas a caminhar. Aposto que é uma conterrânea minha, paulista, naquele hábito da pressa, me dá até ternura. Essas elucubrações e as pipocas desviam minha mente de algo que andou me afligindo: como seria retornar a Porto Alegre uma ano depois de tudo?
Um ano antes, em outubro de 2023, reencontrei um grande amigo, Thiago Ambrósio Lage, ali perto da Orla do Guaíba, na altura do Gasômetro.
Era nossa primeira vez de abraços em pessoa depois de tanto tempo. Você se lembra quando reviu amizades queridas?
Tínhamos sobrevivido a uma pandemia, a duas eleições presidenciais, tudo à distância para nos revermos justamente ali na capital gaúcha. Nos abraçamos, rimos e fizemos selfies no por-do-sol. Tínhamos viajado, ele de Palmas e eu de São Paulo, para participarmos juntos da Odisseia de Literatura Fantástica, um evento importante do calendário literário de quem gosta de literatura insólita.
Naquele dia, fui correr ali na pista, enquanto o Thiago ficou fazendo aquarelas. Fiz fotos e comentei como a água estava alta, chegava a cobrir a base de algumas árvores. Voltamos juntos ao hotel. Depois, sonhei com isso, pois me fascina a questão da nomeação do Guaíba. Um corpo d’água. Nem rio, nem lago. Sonhei e rabisquei um projeto de conto em duas temporalidades.
Bom, você sabe como tudo termina.
Em maio de 2024, vimos as enchentes no Rio Grande do Sul.
Em março de 2024, já tínhamos visto cenas terríveis no Acre. E depois secas e queimadas. A catástrofe climática envelopa o globo e, por mais que alguns magnatas queiram inventar saídas irreais, não há mais um lugar que não seja afetado. Eu pesquiso justamente essa Mudança. E sempre meus olhos e minha mente nunca fazem jus à crueldade e ao real.
Naquela sala de embarque, meses depois, em novembro de 2024, observava as pessoas impacientes, com minhas mãos meladas de pipoca doce, numa tentativa de elaborar isso, com os dedos marcados de poente.
Como seria regressar, quase um ano após, para conversar com pessoas vindas desse mundo do impensável, pessoas que passaram por um limiar das águas, a da sobrevivência, o do contato com o que ainda não conseguimos bem nomear?
A linha
Cheguei, larguei as coisas no hotel e logo fui perambular pelo centro de Porto Alegre. Os prédios estão recém-pintados, as pessoas apressadas, a livraria com clientes, o bar cheio. É sexta-feira, com aquela alegria no ar.
Sei me localizar relativamente bem, ali é a rua da Casa de Cultura Mário Quintana. Procuro nem sei bem o quê. Dou minhas voltas, tomo um café. Começo a rabiscar algo que vai se tornar neste texto. A linha. Ao longo dos dias, fui escutando muitas pessoas, descobrindo a existência da linha, um ruído de fundo, o tempo inteiro presente. Perceptível nos lugares menos prováveis. Num muro de estacionamento. Na porta de correr de uma loja fechada. Numa pichação. Uma sequência de pontos formando uma linha, um fio torcido com sua energia silenciosa, formando um traço, um nó.
A linha da altura da água.
O risco desde maio.
“A água chegou até aqui.”
Esse fio visível e tenso ancora o tecido das conversas, as histórias nas quais a pandemia é confundida com a enchente. A corda vocal do cansaço geral, das coisas perdidas, da ameaça de novas chuvas. Uma época na qual se sonhava muito ou não se sonhava nada. Me contaram, o pesadelo era acordar e ter que limpar o lodo acumulado, lidar com o terreno instável. Lidar com o que se foi e o que foi trazido, a inversão das leis do mundo, do que é seco, do que é molhado, do que é seguro, do que é passado.
“Você me pediu para falar algo sobre a enchente?
Eu queria te falar sobre o silêncio.”
Foi isso que uma amiga querida me disse num café. Elegante, de batom e brincos, me olhou bem e depois fixou o olhar no teto. “Os geradores. A gente só ouvia o barulho de geradores. O silêncio era muito grande, sabe? A gente ouvia só uns barulhos, mas não ouvia barulho de gente, o barulho da cidade. Só os geradores".
Em todos os lugares, começo a compreender.
A altura da água. A altura do silêncio.
O risco.
Cidadãos do futuro
O motivo da viagem de novembro era participar de uma mesa na Casa de Cultura Mário Quintana, na série “Cultura no Antropoceno". Apesar de ir para falar, sempre gosto de ouvir, abraçar pessoas. Preparei minha fala começando com um achado de pesquisa.
Kim Stanley Robinson, o escritor estadunidense de ficção científica ecológica, tem um livro que se tornou um queridinho, um best seller, indicado por Barack Obama e Bill Gates: The Ministry for the Future (sem tradução ao português, seria algo como “O Ministério do Futuro”). Esse livro quebra-cabeça, com múltiplos narradores, do sol ao fóton, com ensaios e histórias, centra-se em duas personagens. Uma é uma mulher que justamente trabalha no tal fictício Ministério do Futuro, uma agência da ONU. A outra é Frank May, um indiano que sobreviveu a uma onda mortífera de calor.
O achado é o seguinte, um pesquisador brasileiro, Anderson Soares Gomes, vai usar uma expressão impressionante para falar do livro, naquele momento lindo em que a crítica desdobra a literatura:
“É como se Frank fosse um cidadão do futuro (e de certa forma ele é, pois sobreviveu à onda de calor na Índia que vai se tornar cada vez mais comum no futuro em outras regiões do mundo) (...)”.
Ao contrário do que se possa imaginar, cidadãos do futuro são pessoas que já vislumbraram o outro lado da Mudança. Apesar de lidar muito com o tema, ainda não sei o que é isso.
Aquelas pessoas, ali compartilhando suas angústias e sonhos em Porto Alegre, são cidadãs de um mundo do porvir, unidas no risco que as amarra com suas memórias. Eu havia ficado noutro tempo. Mas já conseguia ver o que se delineava.
A linha, o risco.
A espinha da cobra
Voltei de Porto Alegre com os olhos cheios de água durante o voo. Em Brasília, contraí a influência. Muita febre, misturada com as ameaças de crise de asma. Em duas madrugadas, pesadelos vívidos me abateram, delírios em cores de diferentes tipos de azul e preto.
Na primeira noite, sonhei que estava num lugar que deslizava muito, tenho algum tipo de memória muscular por pisar em desbarrancamentos no litoral, mas no delírio tudo era instável, ruas, calçadas, a ideia absurda de chão era escura. No delírio, eu era uma cobra imensa e, ao mesmo tempo, a cobra abria sua boca imensa e me engolia. No sonho, eu queria sair do sonho. Ao mesmo tempo, a cobra me provocava, “não era você que queria sonhar com outras coisas?" e me engolia, me engolia.
Nunca acordei dessa visão.
Fora do sonho, há duas memórias borradas.
Quando eu era pequena e estávamos no litoral, vi uma cobra tentando entrar pela janela de casa. Nesse dia, eu vi a cobra, mas não conseguia falar nada. Perdi a voz. Igual acontece nos pesadelos. Abria a boca e nada saía. Eu queria chamar minha mãe. Eu queria chamar a mulher da casa da frente. Mas nada saía de minha garganta. No final, foi minha paralisia e os gestos estranhos que chamaram a atenção de minha mãe e a mulher da casa da frente espantou a visitante.
Numa outra vez, aconteceu de uma cobra passar muito perto do berço do meu irmão. Lembro bem, ela passeava pelos tijolos amarelados. Pelos meus cálculos, eu devia ter uns cinco anos e meu irmão era ainda uma criança de colo. Não me recordo do que aconteceu depois, esses apagões de lembranças. Sei que estamos bem. Meu irmão é um homem com mais de 1,80 agora.
Dessas duas memórias infantis, só tenho a memória muscular do que é perder a voz por pavor.
No delírio da febre de influenza, essa sensação forte voltava, bem física, apertando a garganta.
Ao mesmo tempo, eu submergia num desejo em ser a própria cobra.
O delírio é uma loucura.
Um poema sem serpente: atos falhos e completos
Sim, o delírio é uma loucura. Estava em dúvida em como trazer meu sonho para você e lembrei que a poesia poderia nos ajudar, costurando esses fios, esse riscar o risco do texto.
Bem, estava eu escolhendo um poema para você, decidi por um que gosto muito, da minha amiga Pilar Bu. Mas, ao trazer para cá, percebi que cometo dois atos falhos vergonhosos.
O primeiro, tem a ver com o título do poema, por anos li “Ultraviolenta”, onde se lê somente “Ultravioleta”.
O segundo, eu tinha certeza que o poema que dá título ao livro continha uma cobra. Mas não tem, a cobra só está como ilustração na capa do livro e na minha pobre imaginação.
Aí vai o trecho, gosto muito dessa primeira estrofe:
“, estou em processo
de troca de corpo
readequando unhas,
pêlos e músculos
tirando esse outro
que habitava
há um tempo por aqui…”
Na época em que o livro da Pilar saiu, eu precisava muito dessa metáfora para troca de pele, queria me ver livre de coisas nojentas que me tocaram. Talvez meu cérebro tenha autocompletado o poema. Afinal, as cobras trocam regularmente suas escamas. Firmava-se esse desejo de ser cobra. Pelas serpentes, tenho o respeito e a fascinação.
Naquela época, achava que os humanos demoravam sete anos para trocarem de pele. Isso também não é verdade. Descobri hoje que 20 a 40 dias são mais que suficientes. Uma ou duas luas. Que alívio.
Mistérios e delírios
Há coisas que a cobra dos sonhos me disse que não posso trazer para cá, assim. Não é por falta de palavras, mas por precaução. Algo do mistério precisamos guardar.
Para fechar o texto, conto que voltei à capital gaúcha agora em junho para um curso e lançamento de livro.
Revi pessoas que amo, conheci outras que somente conhecia do Zoom, fui à feira, vi minha amiga comprar rabanetes, observei a névoa das respirações se formando na manhã gelada.
Trouxe muitas coisas para ler e mais rabiscos no caderno. Alguns sobre ser um pouco essa cidadã do passado e sobre quando ocorreria minha passagem ao mundo.
Novamente fui correr ali no Gasômetro (estava frio de doer). Observei as águas e prometi que fecharia esse texto.
Por amor e pelas coisas impossíveis de serem ditas.
Ainda penso muito nisso, no sonho, de ficar assim, sem voz, estatelada, diante de tudo.
Será que não é a única coisa que a gente pode fazer diante da Mudança? Afinal, “emudecer” tem o parentesco fonético com “mudar”.
Que a serpente, se vier, seja a de plumas.
Referências
GOMES, Anderson Soares. “Crise climática e reconfiguração do romance contemporâneo em The Ministry for the Future, de Kim Stanley Robinson”. Matraga, v. 29, n. 55, p. 130-142, jan./abr. 2022.
BU, Pilar. Ultravioleta. Curitiba: Kotter, 2016.
Assincrônicas
Seguem indicações de newsletters de escritores que vivem no Rio Grande do Sul, com os quais aprendi muito sobre tudo isso. Nos comentários, indique outras se lembrar :)
“A casa alagada”, antológica edição de Júlia Dantas, “Sobre ver sua casa tomada pela água e sobre ir perdendo coisas que são mais que coisas".
“A Melanocetus johnsonii e eu”, “Essa semana fiquei muito comovida com uma história que vi ao rolar meu feed infinito do Instagram, a do peixe-diabo negro”, edição da newsletter da Natalia Borges Polesso
“Sabotagem: Niilismo e performance no Antropoceno, ou: O data center de Eldorado é inevitável?, edição da Dentes guardados, do Daniel Galera
Continente de espectros: política e fantasmagoria, edição da Espeluznante, de André Araújo
Não podia deixar de mencionar o Clube de Leitura Escuromeders, da Irka Barrios
Queria ainda recomendar o livro de poemas Nos beats do coração de um musaranho, da Vitória Vozniak.
“Cultura no Antropoceno”: publicação
A Casa de Cultura Mario Quintana, de Porto Alegre, publicou um caderno de resumos sobre os encontros que realizou no ano passado, publicação organizada por Ana Cristina Steffen, Germana Konrath, Paulo Reyes e Taís Cardoso. Vale conhecer o material.
Síncronas
O Carga viva, meu último romance, está em clubes de leitura em julho e agosto, algo que compartilho com felicidade:
Clube do Livro da Rita von Hunty, Tempero Drag. Detalhes no ApoiaSe.
Literatura e Psicanálise: Clube do Livro, coordenado por Fabiane Secches.
🌊 Está chegando a FLIP!
Se for, avisa! Vamos nos ver, participarei de mesas por lá.
Sobre esta edição
Para produzir essa edição foram necessários quatro anos de encontros, um saco de pipocas, uma contaminação pelo vírus influenza, noites de delírio e dias de muita escuta. Uma enormidade de rascunhos, que foram mudando de forma ao longo desse tempo.
Queria deixar registrado meu carinho pela Casa de Cultura Mário Quintana, um lugar muito importante para todas essas vivências. Também pela livraria Baleia, que acolheu meu lançamento do Carga viva agora em junho.
Aproveito ainda para agradecer a todas as pessoas que apoiam a newsletter e permitem que eu consiga parar e refletir sobre esses momentos preciosos da vida, trazendo essa linha de risco ao texto.
Muito obrigada 🧡
Agradeço a leitura!
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Canais
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Instagram: @anarusche
Obrigada por estar aqui, respirando lado a lado. A leitura, esse mistério antigo.
Conheça: Ferozes melancolias: o amor, a viagem e a escrita.
No livro, há uma outra crônica de viagem sobre Porto Alegre, assim como sobre Chengdu, Kinshasa, Nova York, Paraty, Santiago e outras cidades.
é ótimo acompanhar todo o seu texto .. simplicidade na escrita e reverberando amor e carinho para quem le ... são colocações que nos encantam e nos fazem refletir , a vida é um enorme dasafio e a literatura nos coloca ., rebola, faz pensar , refletir e por ai vai (estou com 88 anos ) abraços e luz adoro acompanhar seus textos .
emudecer para mudar, será? recolher-se ao silêncio é uma boa maneira de parar para pensar, sem ouvir a si mesmo, prestando atenção ao redor…