Olá!
A primavera chegou no hemisfério sul! Espero que você esteja bem e com o coração no lugar. O meu está acelerado — até o dia 2 de outubro, será uma longa espera.
Agradeço por prestigiar a Anacronista! 💌
Nesta edição, decidi comentar o famoso livro da Rachel Carson, que completou 60 primaveras este mês. Falei da obra no último encontro do Filamentos, projeto sobre ecologia e ficção científica que mantenho com a editora Bandeirola.
Decidi compartilhar na newsletter os achados sobre esse clássico, assim, chegam a mais pessoas.
Um abraço e boa leitura!
A guerra total contra os mosquitos
Confesso que quando escutei este título pela primeira vez, Primavera silenciosa, achei tranquilizante. Parecia um haicai, forma poética que celebra a contemplação da natureza. Mas é o oposto: o título refere-se a uma primavera sem pássaros, uma estação espectral e desoladora, na qual o canto de pássaros não se ouvia mais.
A bióloga e escritora Rachel Carson publicou o livro em setembro de 1962, denunciando o uso excessivo do DDT (diclorodifeniltricloroetano). Sim, o mesmo que deu origem ao verbo "dedetizar". A denúncia teve um efeito prático, a proibição da produção doméstica do DDT. Mas também foi um solo fértil para ideias, servindo de base para movimentos ambientalistas.
Para dar algum contexto, nas décadas anteriores, houve um plano de erradicação da malária nos Estados Unidos. O discurso de guerra, para seguir quente e na moda, era requentado para travar um extermínio a insetos. Veja como começa um vídeo de treinamento da Marinha dos EUA sobre o uso de DDT em 1944:
"Estamos em uma guerra total. Nossas forças devem ser reunidas contra qualquer inimigo, visível e também invisível, em todos os lugares, o tempo todo."
Isso tudo era para se referir a larvas de mosquitos. A ideologia belicosa louvava o uso do DDT para combater esses inimigos, magricelas infiltrados, cruzando fronteiras.
Sobrou até para as pobres formigas-lava-pés. Vermelhas, vindas da América do Sul, essas imigrantes ilegais instalaram-se no sul dos Estados Unidos e receberam então toda a cólera dedetizadora, bem ao sabor da Guerra Fria, alimentada com o clima de suspeição e intolerância, conforme descreve Linda Lear. O uso desmesurado de DDT foi denominado acertadamente por Edward O. Wilson de “Vietnã da Entomologia” (Lear e Wilson assinam, respectivamente, prefácio e posfácio de Primavera silenciosa).
Pedi para a oceanógrafa Adriana Lippi falar do livro exclusivamente para a Anacronista. Ela me respondeu o seguinte sobre o clássico que completa 60 anos:
"Primavera silenciosa importa bastante, porque traz a contação de histórias para falar de ciência. A Rachel Carson é muito hábil nesse sentido. O outro motivo é o seguinte: a gente ainda não aprendeu uma lição que ela tentou trazer — não conseguimos lidar muito bem com o princípio da precaução, não conseguimos limitar o uso de agrotóxicos e ainda ignoramos os impactos de muitas atividades humanas na Fauna e na Flora. São coisas que só quem tem o dom da escrita afetiva e criativa consegue transmitir: a beleza e a importância desses organismos na nossa vida."
A chegada de uma estação aterrorizante
Em Primavera silenciosa, Rachel Carson irá reunir evidências do uso pernicioso do DDT, aniquilando, de forma indistinta, seres viventes. Gosto dessa passagem, na qual a escritora e bióloga selecionou uma carta de uma mulher no Alabama:
"Nossa terra tem sido um verdadeiro santuário de pássaros por mais de meio século. No último mês de julho, todos comentamos: 'Há mais pássaros do que nunca'. Então, de repente, na segunda semana de agosto, todas as aves desapareceram. Eu estava acostumada a levantar cedo para cuidar da minha égua favorita, que tinha uma jovem potra. Não havia um único som de canto de pássaros. Foi estranho, aterrorizante."
A figura retórica, usar os pássaros, para alertar a população sobre algo mais abrangente, é de uma sabedoria genial. Embora pareça valorizar os pássaros em detrimento a outras espécies, como formigas e minhocas, termina por ser uma estratégia boa para criar comoção popular. Quem sabe as imagens desses dias sobre baleias encalhadas, de cortar o coração, não tragam um apelo a algo muito maior e mais complexo que se passa no planeta?
A obra foi um fenômeno em sua era, primeiro publicada na revista New Yorker de forma seriada e depois reunida em livro. A Carson já era uma escritora muito conhecida em seu tempo — O mar que nos cerca (1951) ganhou até o National Book Award.
Assim, quando a escritora trouxe a bomba do Primavera silenciosa, possuía tudo para ser lida. Inclusive haters. Conforme explica Ramón Bonzi, "a indústria química reagiu imediatamente, combatendo duramente a obra e entrando em campanha declarada para desacreditar a sua autora" (artigo "Meio século de Primavera silenciosa: um livro que mudou o mundo", revista Desenvolvimento e Meio Ambiente 28, 2013).
Rachel Carson sobreviveu à campanha de difamação, mas não ao câncer, falecendo precocemente aos 56 anos.
De qualquer forma, a obra de Carson está aqui agora conosco pulsando. Impossível ler e não pensar na liberação demente de agrotóxicos nesse último desgoverno. Nas análises à obra, talvez falte dizer que Carson não é a "mãe" do movimento ambientalista. Isso está em tudo que veio antes. O envenenar a Terra por homens brancos, para dar um exemplo, é uma constante nas acusações de povos indígenas contra a colonização das Américas. Talvez atribuam essa origem do movimento ambientalista à pena da talentosa bióloga, pois agora o precipício começou a ficar nítido.
Uma notícia sobre as formigas-lava-pés:
As formigas de fogo seguem sendo invictas até no nome científico: Solenopsis invicta. Mesmo com toda a campanha dedetizadora a la Apocalipse Now no pós-guerra, seguiram infestando tranquilamente muitas terras ao redor do globo. Como já diria o dito, "pisa ligeiro, quem não pode com formiga não assanha o formigueiro".
Recomendo
Perfil de Rachel Carson, feito pela oceanógrafa Adriana Lippi. É possível ler ou escutar como podcast.
Escutar um episódio de podcast de assunto correlato, As previsões de Lovelock, o profeta de Gaia, feito pela talentosa Aline Valek, com participação também da Adriana.
Posfácio de Edward O. Wilson ao Primavera silenciosa (agradeço à Vera Bulla por me chamar a atenção a esse texto lindo).
Newsletter Ponto Nemo, do Arthur Marchetto, que fez uma temporada toda sobre a ecologia e poética dos fungos.
Os livros de Rachel Carson, Primavera silenciosa (1962), O mar que nos cerca (1951) e Sob o mar-vento (1941) estão publicados no Brasil pela editora Gaia.
🌿Filamentos, conversas sobre ficção científica e ecologia
Estou escrevendo um livro de ensaios sobre literatura e ecologia, que dialoga com minha pesquisa de pós-doutorado, para a editora Bandeirola.
Junto com a editora, idealizamos o projeto Filamentos. São encontros mensais para conversar sobre esses assuntos, acompanhados de um grupo de whatsapp e uma newsletter para quem quiser. O tema da Anacronista de hoje foi justamente pensado a partir do último encontro, pois achei que valia levar a mais gente o clássico da Carson.
Os temas dos próximos serão os seguintes:
8 de outubro: Autoritarismo, militarismo e poluição
12 de novembro: Inteligência e alienígenas em nosso Planeta
10 de dezembro: Poéticas do inominável
Os encontros ocorrem aos sábados, às 16h, via Zoom e ficam gravados.
Para participar, basta apoiar Filamentos no Catarse. Faltam só 7% para batermos nossa meta e ficaria feliz se você pudesse estar conosco!
Professores recebem bolsa integral para participar, uma forma de mostrarmos nosso apoio a uma categoria tão afetada na pandemia, tão importante à ecologia social. Os detalhes estão neste link: https://www.catarse.me/filamentos.
🌿Em Brasília: bate-papo sobre Depois do Fim
Na próxima quinta-feira, 29 de setembro, às 19h, estarei na charmosa Livraria Circulares, para conversar com a Paula Carvalho sobre o livro Depois do Fim: conversas sobre Literatura e Antropoceno, organizado pela Fabiane Secches.
Se estiver na capital federal ou se puder repassar a quem esteja, agradeço!
O livro conta com ensaios de Ana Rüsche, Aurora Bernardini, Christian Dunker, Daniel Munduruku, Fabiane Secches, Giovana Madalosso, Itamar Vieira Jr., Maria Esther Maciel, Micheliny Verunschk, Natalia Timerman, Paula Carvalho, Paulo Scott e Tulio Custódio. Editora Instante. [link para o livro e link ao e-book]
Livraria Circulares: Comércio Local Norte 113, bloco A, loja 7. Asa Norte, Brasília (DF).
O bate-papo será na quinta, 29/9, a partir das 19h.
✏️ Novembro: Evento sobre newsletters
Um evento só para discutir newsletters brasileiras!
Em um final de semana, com mesas redondas e workshops, o evento on-line vai abordar diferentes aspectos desse novo movimento, com destaque para a reflexão e a escrita.
Anote na agenda!
O texto e o tempo
Dias 5 e 6 de novembro, sábado e domingo
Acompanhe em https://otextoeotempo.substack.com
😺 Para fechar, momento farofa:
Afinal de contas, por que ler?
Só respostas erradas.
As piores-melhores respostas vão para a próxima Anacronista!
Valendo até 3 de outubro, pois seja lá qual for o resultado vai ser o dia marcado de ressaca nacional.
Espero que tenha gostado dessa edição da news!
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Vou adorar receber um comentário também. 🌿
E minha lista da amazon só aumenta com todas as suas indicações haha
texto incrível, como sempre!
Achei bem instigante o título e pensando em como pode ser complicado sensibilizar pessoas que vivem num eterno verão dos riscos de uma primavera silenciosa. Sempre um prazer te ler!