📚 Ofereço o futuro, uma meditação sobre o presente
Existe um truque sobre quando se imagina o futuro. Meditar sobre o que existirá possui um poder imenso, pois estabelece consigo uma base imaginativa.
Olá!
O tema hoje é o futuro.
Uma forma de falar e não falar das eleições, assunto onipresente, afinal, é uma das eleições mais importantes de nossas vidas. Uma eleição para decidir o futuro do planeta, segundo a manchete do New York Times.
Escolhi trazer um raciocínio que usei num artigo acadêmico (e que espero que ainda seja aceito e publicado): as narrativas e o mecanismo da hiperstição. É uma palavra estranha, mas você vai logo entender do que se trata.
No mais, agradeço por prestigiar a Anacronista! 💌
Contar contigo do outro lado ajuda a levar melhor os dias.
Um abraço e boa leitura!
Futuro, uma meditação sobre o presente
Não lido com o futuro da forma cartomante ou futuróloga, embora ambas as abordagens sejam interessantíssimas, assim, me desculpa, mas não consigo trazer nada útil com relação aos resultados da eleição ou aos números da Mega-Sena. Entretanto, o futuro é a matéria-prima imaginativa, por excelência, da ficção científica, um dos meus campos de estudo. Uso o futuro para meditar sobre o presente.
Antes de tudo, não nos enganemos: não há nada mais antigo que o futuro de ontem. Basta ler sobre o que imaginavam alguns de nossos predecessores do hemisfério Norte, tão ligados à expansão capitalista industrial da primeira metade do século passado, sobre os dias atuais — férias na Lua, robôs sencientes e carros voadores. Embora Elon Musk se esforce para tornar algumas dessas profecias em realidade (em lugar de, sei lá, pensar na redistribuição de renda ou terminar com a fome ao redor do planeta), o que se imagina para o futuro diz muito mais sobre o tempo presente.
“Só o impensável é impossível”
— Paulo Ferraz
Existe um truque sobre quando se imagina o futuro. Meditar sobre o que existirá possui um poder imenso, pois estabelece uma base imaginativa. E isso não é pouco. Se fosse, governos autoritários não iriam censurar tantos livros que fabulam sobre o futuro, inclusive futuros bem doidões a la Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Ao meditar sobre o futuro, a ficção científica torna um pouquinho mais real um imaginário fictício. E você conhece a frase, ideias são à prova de bala.
Isso tudo é estudado dentro da ideia de hiperstição, termo que aprendi com a crítica mexicana Analía Ferreyra Carreres a partir de estudos de Alex Williams, Nick Land e Simon O’Sullivan, entre outras autorias. Trata-se de um fenômeno relacionado com as “estéticas de aceleração”, uma vertente teórica para interpretar inovações tecnológicas a partir da ficção científica política.
A pesquisadora usa o conceito ao analisar o premiado conto Sonharão no jardim, da autora mexicana Gabriela Damián Miravete. A narrativa, ao imaginar um futuro próximo sem violência contra as mulheres, mesmo partindo de um presente distópico, ilustrado por casos reais de feminicídios na América Latina, faz com que a utopia torne um pouco mais provável. Mesmo que lance mão de apontar mecanismos políticos imaginários e reais misturados. Um vislumbre, um estalo.
A ideia de hiperstição seria o fenômeno pelo qual narrativas conseguem afetar sua própria realidade, contribuindo para tornar o que foi imaginado em verdade. Assim, a assimilação de obras futuristas termina por criar um curto-circuito temporal. O futuro previsto impacta o presente de forma que se obtenha aquele mesmo futuro.
Assim, a disputa pelo futuro, no campo imaginário, é muito relevante. Se não conseguimos nem imaginar como sair de uma crise, como iremos encontrar as ferramentas reais da realidade?
“Vivemos no capitalismo e seu poder parece ser inescapável. Mas assim também se parecia o direito divino dos reis. Todo poder humano é passível de resistência e mudança por seres humanos. Muitas vezes, resistência e mudança começam na arte. Muitas vezes, em nossa arte, a arte das palavras.”
— Ursula Le Guin, discurso na ocasião da premiação do National Book, EUA
A ficção ao dar gramática e vocabulário a sonhos e aspirações é uma parte integrante da realidade. Talvez tão tênue que não conseguimos enxergar. Igual ao ar.
A ficção, uma substância invisível sem a qual não conseguimos respirar.
. . .
Três referências
Analía Ferreyra Carreres. [dissertação em espanhol] Cartografías líquidas. Violencia contra las mujeres en cinco cuentos latinoamericanos contemporáneos. Mestrado em Literatura, Cultura e Mídia: Universidade de Lund, Suécia, 2020.
Gabriela Damián Miravete [conto em português]. Sonharão no jardim, trad. Ana Rüsche. Revista Mafagafo, Aves Migratórias 3, abril de 2021.
Alex William [artigo em inglês]. Escape Velocities. e-flux journal, edição 46, 2013.

📚 Ursula K. Le Guin e Margaret Atwood nas escolas brasileiras
Recebi a notícia que os livros Floresta é o nome do mundo, de Ursula Le Guin, e Semente de bruxa, de Margaret Atwood, foram aprovados no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Que alegria!
Pesquisei essas duas autoras no doutorado, investigação que se iniciou há doze anos. Naquela época, eram muito menos celebradas. Sigo trabalhando com a Le Guin no pós-doutorado — e não vou corrigir a ambiguidade da construção, assim, parece que a Ursula trabalha comigo.
As duas obras foram publicadas no Brasil pela editora Morro Branco.
✏️ Newsletter também é literatura?
Esse é o tema da mesa redonda da qual participarei junto de Aline Valek, Ariela K, Carla Soares, com a mediação de Vanessa Guedes, no evento O texto e o tempo, um final de semana sobre newsletters.
O evento conta com mais de 30 participantes, com cinco workshops, cinco mesas redondas, abertura e encerramento. Ocorrerá nos dias 5 e 6 de novembro, sábado e domingo.
Acesse a programação completa e faça a inscrição via Sympla
Obrigada!
Espero que tenha gostado dessa edição da news, que tenha aliviado um pouco o coração acelerado com as eleições.
E não se engane: apesar dos rumores, a cor mais sexy sempre será a vermelha! ❤️
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Adorei a frase " Usar o futuro para meditar sobre o presente". Fiquei aqui pensando com os meus botões sobre como na ficção científica o presente, no geral, apresenta um futuro pessimista na maior parte da História.
Que texto lindo!