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📚 O tempo como uma espiral, ideias sobre o insondável

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📚 O tempo como uma espiral, ideias sobre o insondável

O tempo não seria uma linha reta, mas sim uma espiral? A edição traz ideias sobre a categoria tempo, a partir de um depoimento de César Santivañez, escritor e roteirista peruano

Ana Rüsche
Nov 11, 2022
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📚 O tempo como uma espiral, ideias sobre o insondável

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Olá!

O tema hoje é o tempo. Trouxe um depoimento exclusivo e muito bonito do escritor peruano César Santivañez, a respeito de noções antigas destas terras sobre o assunto, sobre o futuro e algumas outras ideias.

No mais, agradeço por prestigiar a Anacronista! 💌

Saber que você está do outro lado faz toda a diferença.

Um abraço e boa leitura!

Um homem e uma mulher estão com roupas de frio numa selfie. A mulher é branca, de cabelos presos. O homem usa óculos e tem pele morena.
César Santivañez e eu passando frio.

Como entender o futuro, se escrevemos ficção?

Existe sempre uma tensão sobre o futuro. É o insondável, o impensável, o repentino. Assim, quando escrevemos sobre o que ainda não existe, podemos até tatear algo, mas a ficção não opera como o oráculo. Muitas vezes, a ficção é toda a viagem do oráculo, excluindo justamente a parte da profecia.

Tenho a felicidade de conversar sobre esses e outros assuntos estranhos com pessoas maravilhosas.

Uma dessas pessoas é o César Santivañez, escritor de ficção científica peruano e roteirista de animação. Participamos, em fevereiro, de uma mesa sobre ficção e mudança climática na Boskone 59, conferência regional de SFF em Boston, EUA.

Em um auditório, uma mesa com quatro pessoas: três são brancos, dois homens e uma mulher. O último possui pele morena. Todos usam máscaras.
Painel sobre mudança climática, impactos globais e literatura na Boskone59, fevereiro 2022. Com Robert V.S. Redick (EUA), César Santivañez (Peru), Ana Rüsche (Brasil), com moderação de Vincent Docherty (Escócia).

Nas ruas da capital de Massachusetts, passando frio para tirar as máscaras do lado de fora do hotel e dar uma volta congelante para arranjar algo de comer, a gente ficava viajando sobre esses temas.

Assim, sabendo que queria escrever sobre o tempo, pedi ao César um grande favor: explicar “como entender o futuro, como escritor de ficção científica e também peruano?”

Segue a resposta, um depoimento muito especial.


“O tempo não é uma linha reta, mas sim uma espiral”

— depoimento de César Santivañez

“Como natural de Lima e nativo em espanhol, ao longo da minha vida, aceitei como normal uma concepção de mundo firmada na herança colonial do meu país. Isso equivale a dizer que visualizava o tempo como uma linha horizontal infinita, na qual o homem caminha em direção ao futuro como um equilibrista caminha na corda bamba (e se desequilibrasse, onde cairia?).

Dessa forma, também não imaginava como essa ideia está presente com frequência na linguagem do dia a dia — ‘veremos isso mais adiante’, ‘há alguns anos atrás’ e ‘vamos retroceder no tempo’ são apenas alguns exemplos.

Contudo, há alguns meses, deparei-me com um conceito que me obrigou a repensar minhas convicções completamente, repensar meu mundo natural.

Se algum de nós tivesse tido a oportunidade de conversar com um habitante da América Pré-Colombiana, teríamos certamente a surpresa de notar que o nosso interlocutor, quando queria se referir ao que ainda está por vir, apontaria para trás. Este é o Qhipa Pacha, ‘o tempo das costas’ (futuro, em quechua). Mas se, ao contrário, se ele tivesse se referido a acontecimentos que já ocorreram, teria feito um gesto para adiante. Este chama-se Ñawpa Pacha, ‘o tempo dos olhos’ (passado).

Será que isso significa que nossos antepassados acreditavam em um tempo ao contrário? Não exatamente. De acordo com o conceito pré-hispânico, o passado e o futuro ainda se encontram no mesmo lugar. O que muda é a forma como os seres humanos viajam através do tempo: enfrentando o passado, caminhando para trás em direção ao futuro.

A explicação é simples: embora não possamos ver o futuro, podemos analisar os erros do passado e redirecionar nossas próprias vidas como acharmos melhor. E ainda há algo a mais: o tempo não é uma linha reta, mas sim uma espiral. Tudo, de certa forma, obedece a um ciclo constante de vida e morte.

Isso tudo mudou minha compreensão sobre meu lugar no mundo. Sinto-me muito mais consciente de pertencer a uma tradição literária, familiar e histórica. Ignorá-la seria a pior forma de enfrentar novos tempos.

Daí o nome do coletivo de escritores de ficção científica ao qual pertenço: Qhipa Pacha. Daí a nossa firme convicção de compreender o nosso passado para nos ajudar a moldarmos o futuro da literatura de gênero no nosso país: uma que se sinta verdadeiramente nossa.”

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O futuro está nos olhos em quem nos antecede

As ideias desse depoimento valioso do César Santivañez são úteis para desautomatizar nossa linguagem, sendo o mais relevante deslocar um pouco nossa forma de pensar. Por exemplo, conseguir imaginar que o futuro sempre passa por olharmos bem nos olhos de quem nos antecede.

E isso vem com uma camada de ficção, claro, pois podemos escolher quem nos antecedeu imaginariamente, conectando-nos a imensos sonhos antigos.

Olho bem nos olhos de quem brigou para que o voto não fosse censitário nesse país. Ainda podemos olhar firmes nos olhos de quem lutou para que mulheres escrevessem. Inclusive, quando estou com preguiça de escrever, é para essas pessoas que escrevo. Para que os esforços de um futuro possível do passado não sejam em vão.

É a partir de miradas fictícias que tecemos sonhos mais profundos e complexos. Os mais brilhantes sonhos sonhamos em vigília, a partir de fractais de desejos passados por gerações e gerações.

Sonhos imensos, teias que seguram o peso do mundo.

Imaginar é um imenso poder humano a ser nutrido, tecido e compartilhado.

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5 months ago · 14 likes · 7 comments · Ana Rüsche

Para conhecer o trabalho do César Santivañez

  • Site do autor com artigos

  • Coletivo peruano Qhipa Pacha

  • No IMDb: curtas-metragens El Mejor Lugar del Mundo (2019) e Lulu (2018)

  • Livro: Llaqtamasi, antologia de ficção especulativa peruana

Sobre outros conceitos de tempo: por coincidência, a

Segredos em órbita
escreveu ontem sobre o tempo na antiguidade egípcia.


✏️ Sábado de escrita

Amanhã, 12 de novembro, das 9h às 10h30, ofereço mais um Sábado de Escrita!

Durante o encontro, você pode trabalhar em um projeto em andamento — dissertação de mestrado, ensaio, postagem de blog, textão, desabafo, poema de escárnio, romance, conto, crônica ou o que quiser.

O propósito da atividade é somente escrever. Não serão encorajadas conversas fora das dinâmicas para mantermos uma boa concentração. Haverá uma pequena introdução e comentários pontuais sobre técnicas e rotinas de escrita.

Gratuito, com contribuição voluntária. Inscrições via Sympla


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Meu muito obrigada ainda para quem lê e recomenda a Anacronista 💚

Todo poder à alegria, ao desejo e à imaginação!

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16 Comments
Gabi Albuquerque
Writes Tempo para você
Nov 16, 2022Liked by Ana Rüsche

vou me lembrar disso daqui em diante "inclusive, quando estou com preguiça de escrever, é para essas pessoas que escrevo.". <3

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1 reply by Ana Rüsche
Carol Chiovatto
Writes Porém Carol Chiovatto
Nov 14, 2022Liked by Ana Rüsche

Eu já conhecia o conceito quechua de como encarar o passado e o futuro, mas gostei muito de como você articulou as ideias! E o tempo todo fiquei pensando no evento O Texto e o Tempo e, realmente, no quanto a newsletter é um formato híbrido de texto, e extremamente relacional. Dá vontade de devorar as referências e ficar lendo as indicações, que se desdobram noutras, e assim pra sempre. Obrigada pelas indicações de leitura. Eu não conhecia o trabalho dele!

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1 reply by Ana Rüsche
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