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📚 O coice, o beijo do vazio
Sobre a sensação de finalizar algo e sentir o impacto do vazio. Ou a sensação estranha de quando já não sabemos mais fazer o que adoramos fazer.
Olá!
Tudo certo por aí? Espero que sim.
Comecei a escrever esta edição enquanto estava a muitos pés de altitude, numa das máquinas mais impressionantes que conheço, o avião — quando o peso metálico se transforma em outras possibilidades. Agora, estou diante de uma escrivaninha no Planalto Central.
Nas notas iniciais, feitas no celular, encontrei fotos de nuvens fofas e minha pontinha de medo escondida na paisagem, além de uma pergunta inicial: durante um caos sentimental, como se faz para não enlouquecer?
Bom, a lua cheia está nos céus. É hora. Assim, farei um voo livre sobre isso.
Agradeço se me der a mão e vier comigo.
O original e o coice
Encontrei esta palavra, o “coice”, para designar a sensação de finalizar um original e sentir o impacto do vazio, a sensação estranha quando já não sabemos mais o que ocorrerá com o texto. A probabilidade é que seja publicado. Mas por onde sairá? Depois, aquela dúvida, falará com o coração dos vivos? O coice é o soco do silêncio, uma reação à entrega de uma pilha imensa de trabalho, resumida em 50 mil palavras, cujo todo o futuro é ainda mistério.
O coice pode ocorrer em várias áreas da vida. Por exemplo, após uma declaração de amor impensada, quando ainda há um instante de silêncio do outro lado. Após realizar um processo de admissão difícil por dias e ainda não se saber o resultado. O coração paraquedista que se joga nos ares e ainda não sente o freio da queda flutuante.
O coice envolve a parada medonha antes da rejeição e do desânimo. Ou algo pior, antes da felicidade iminente, do risco das coisas darem absolutamente certo. Afinal, não há nada mais estranho e terrível do que um desejo atendido.
Cultivar o entusiasmo com o mundo
Para sair deste estado de coice, uma alternância entre o desânimo e a ansiedade, procuro cultivar certo entusiasmo com as coisas, embora meu coração esteja em outro lugar.
Em primeiro, o destino mesmo se encarregou de me dar uma mão: recebi uma encomenda para escrever um conto, daqueles que já queria escrever. Sairá em outro idioma, mas darei um jeito depois de publicar aqui depois.
Em segundo, decidi me aventurar num curso on-line de aquarela. Sou ruim pacas com coisas manuais, assim, excelente, pois impossível ser perfeccionista também nessa área. O Thiago Ambrósio Lage, da Mercúrio em Peixes, bem denominou essa empreitada de um exercício de imperfeccionismo: a água com a tinta vai para onde quer, os pigmentos começam agir por vontade própria, parece que você tem uma colônia de microorganismos alienígenas pululantes numa placa e não mais um papel na sua frente.
Em terceiro, voltei a escrever poesia. Não que esteja no meu melhor ânimo (afinal, meu original pronto também tratou bastante de poesia), mas utilizando uma cena que adoro de Duna, livro de Frank Herbert, não se pode esperar o ânimo para escrever.
A cena muito instrutiva é uma lição para o jovem Paul Atreides, o qual, depois de um dia cheio, não estava com ânimo de praticar lutas. Daí o Gurney Halleck, fazendo as vezes de instrutor, dá uma bronca no aluno, já dando uma estocada no pobre rapaz, provocando:
"E o que ânimo tem a ver com isso? Você luta quando a necessidade bate na porta, não importa qual seu ânimo. Isso é coisa para gado, para fazer amor ou tocar baliset. Não serve para lutar." (estou citando a cena de cabeça, com uma tradução livre, então, releve se eu tiver errado algo).
Bom, não toco baliset, mas acho que até para escrever poesia é melhor não aguardar o ânimo chegar. Aliás, talvez seja o contrário, a gente se inspira exatamente depois de rabiscar, editar, polir imagens, lutar com os fonemas. É isso que faz o entusiasmo voltar a nascer no coração, nos sentirmos com deuses adentro.
Em quarto, procuro levar a sério minha prática de corrida. Nem sempre nas melhores condições, em muitos dias quase um milagre estar ali na pista, driblando freelas, o congestionamento de mensagens urgentes, as lesões antigas. Entretanto, minha professora e minha turma são ótimas. E sempre será mágico aproveitar o sol das manhãs.
Por fim, gostaria de agradecer, de coração, a sua leitura desta newsletter. Dentro desse caos sentimental, a criação deste espacinho de respiro me ajuda a lembrar das pessoas maravilhosas que existem do outro lado da tela.
E me lembrar dos motivos pelos quais a gente logo vai começar a criar uma outra narrativa desde o zero.
Mais uma vez.
Café de quinta
histórias escuras diluídas em duas xícaras duras.
o vento frio e a ternura lambem
a raiva fresca.
o mundo é o mundo inteiro e também
a mudança.
Newsletterverso
O lugar secreto das coisas que não falam: recomendo muito a última edição do Sofá da Surina, dedicada a haikais, me ajudou em exercícios em formas curtas, sempre brutas na dificuldade.
A saudade de um cego: edição da newsletter do Samuel Muca está muito especial.
Larga tudo e surta é o tema da Derivativa, newsletter que a Iana A. voltou a publicar.
🌿 Filamentos, não perca!
Em função do projeto Filamentos, a próxima edição da Anacronista está caprichadíssima! Vamos publicar um conto da autora mexicana Iliana Vargas, traduzido ao português, com direito a um comentário crítico breve. Foi um trabalho tecido a muitas mãos e ficaria muito feliz se você pudesse acompanhar.
Neste mês, vamos comentar dois textos: o conto "Semente", justamente o conto a ser enviado gratuitamente na próxima edição, e o livro de não ficção O pensamento ecológico, de Timothy Morton (Quina, 2023).
O encontro on-line será no dia 15 de abril, sábado, das 14h às 15h30 em Brasília.
O projeto Filamentos é organizado pela editora Bandeirola e por mim.
Para participar, catarse.me/filamentos2023
Distopias em dois tempos
Ministrarei um curso rápido on-line na Casa Inventada, um panorama das principais distopias na literatura do século XX e XXI. A partir de obras que traduziram imaginários de suas épocas, a atividade pretende abordar autorias clássicas, como E. M. Foster, George Orwell e Ray Bradbury; passar por nomes contemporâneos, a exemplo de Margaret Atwood e de Ignácio de Loyola Brandão, até realizar um comentário sobre tendências atuais, a exemplo da trilogia de N. K. Jemisin e do premiado livro da uruguaia Fernanda Trías.
On-line, nos dias 26 e 27 de abril (quarta e quinta), das 18h30 às 20h.
Inscrições no site da Casa Inventada
Leituras extraordinárias
Para quem estiver na cidade de São Paulo, a Paula Carvalho e eu organizamos um ciclo de leituras na Livraria da Tarde. A ideia é sextar com merecida dignidade e conversar sobre livros que trazem um algo a mais.
Em abril, vamos conversar sobre o magnífico Piranesi, obra de Susanna Clarke (Morro Branco). Se puder, venha! Para participar, não precisa ter lido o livro antes. A atividade é gratuita.
Leituras extraordinárias. 28 de abril, sexta-feira, a partir das 19h. Livraria da Tarde. Rua Cônego Eugênio Leite, 956, Pinheiros, São Paulo (SP).
Muito obrigada!
Agradeço a leitura! Se você gostou desta edição da newsletter:
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🧡 Vou adorar receber um comentário também! Sobre coices e outros temas.
Meu muito obrigada para quem lê e recomenda a Anacronista 🧡
Para hoje e todos os dias de 2023:
todo poder à alegria, ao desejo e à imaginação!
📚 O coice, o beijo do vazio
Mas tá aí um coice que vale a pena ser sentido haha
amiga, semana passada me falaram tão mal de Duna, do nada, que senti saudade profunda de vc na hora. Ao invés de rebater ou explicar, eu só respirei fundo e me senti feliz por ter vc (e alguns outros poucos) com quem consigo amar (sem nunca deixar de problematizar) a saga de Paul Atreides.
Obrigada por tudo, como sempre ❤️
O coice de hoje foi saber que ainda amo meu namorado, mas que não tem muito jeito de continuarmos juntos. Um amontoado de pequenas coisas demonstra a impossibilidade. É um coice no rim.