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📚 Na força da melancolia
A melancolia e a escrita, da meteorologia às incertezas. Algo que emerja para colocarmos o celular de lado e olharmos outras coisas? Uma música que sempre cantei errado. Convites e agenda de junho.
Olá!
Entre arrumações de mala para a Itália, lançamento do A telepatia são os outros, no Salão do Livro de Turim (estou intimidada em visitar Roma, cidade com 28 séculos, nem sabia que era possível existir tantos séculos num mesmo lugar), consegui parar com uma xícara de café no sofá e finalizar mais uma edição da Anacronista!
O tema é a melancolia e a escrita. Embora eu esteja fechando a edição num domingo com grande alegria, o velho paradoxo da publicação — mal nos lembramos quem éramos ao rascunhar o texto. Quem era aquela pessoa mesmo? Espero que goste.
Conto ainda sobre uma música que cantava errado. Indico leituras e deixei convites caprichados para o mês de junho, on-line e presenciais.
Agradeço muito a leitura!
Nada teria sentido sem você do outro lado da tela. ❤️
Importante: neste texto, não usarei “melancolia” como sinônimo de “depressão”, “cansaço excessivo”, “exaustão” ou “burn out”. Se você sentir que precisa de ajuda para lidar com sentimentos assim, converse com outras pessoas ou procure ajuda especializada.
A meteorologia da escrita
Há pessoas que escrevem na força do ódio. No auspicioso dia em que fui conhecer em carne e osso um dos escritores que mais admiro, China Miéville, enquanto pegava o autógrafo em meu exemplar de October, na McNally Jackson, livraria independente no Soho, em Nova York, foi a respeito disso que conversamos. A força da raiva e da indignação no estalo criativo, no abrir o teclado para escrever.
Entretanto, não sei se é meu mapa astral, mas há um sentimento que me impele muito mais adiante: a melancolia. Sei que há pessoas que escrevem motivadas por outras comoções, como a aversão e o nojo ou ainda por nostalgia. Assim, hoje o tema é a melancolia, mesmo que eu não tenha assistido ainda o filme do Lars von Trier.
Não vou recorrer a dicionários de psicanálise ou psicologia para explicar esse sentimento (até para não me contradizer), mas talvez você saiba. A imensa massa sentimental que se estende por todos os lugares, tingindo tudo com seus tons lavados, acinzentados, um tanto frios, que, no entanto, não te deixam afundar.
Há uma tranquilidade triste nesse estar, uma certa paralisia analítica, um convite ao recolhimento introspectivo. Algo que abre brechas para uma observação sobre a perda, a beleza e a fugacidade da vida, um julgamento mais suave sobre o mundo ao redor.
Esse estado passional apresenta um quê de anti-sistêmico no século XXI, quando os quadrilhonários forjaram os algoritmos, armadilhas que nos querem na revolta e na reação indignada por coisas comezinhas ou, ao contrário, pela excitação irritante. Querem nos queimando nossa energia, consumindo nosso impulso de vida mais precioso num scrolling infinito da tela o tempo inteiro. Até que clicamos numa propaganda para comprar algo, quando a armadilha se fecha e nos morde.
Talvez o sentimento melancólico emerja para colocarmos o celular de lado por um momento e olharmos outras coisas — as paredes, os espelhos, as janelas, as árvores, o céu. Que força sombria não é essa, capaz de obliterar a luz da tela que nos olha, onipresente.
Dito tudo isso, não sei você, mas sou suscetível à meteorologia, a impermanência da previsão do tempo termina sendo uma camada extra para lidar no balanço dos humores, uma camada extra nas coisas que não controlamos, empilhada em cima dos ciclos hormonais, fases da lua, tábua das marés e da remarcação de preços no supermercado.
Se o gramado está ensolarado, uma alegria brilha junto no meu peito. Se as nuvens passam carregadas, algo se assombreia por dentro. Entretanto, é justo no dia nublado, com nuvens escuras, em que a mágica acontece. Quando a paisagem desanimadora me transporta para algum lugar descampado, desconfortável, até desolador; ao mesmo tempo, tão imenso, nessa passagem imaginária entre mundos. Até algo sair.
E a irrupção disso é que a melancolia me presenteia.
Naquela maravilhosa animação, Divertidamente (dir. Pete Docter, 2015), é a personagem da Tristeza que brilha, com seu óculos escorregando do nariz, com seus ombros arqueados, com seu jeito de pesquisadora de ciências humanas, pois tinge tudo com azuis profundos. É no encontro da Alegria com a Tristeza, que muitas coisas mágicas acontecem.
Não lembro como estava a situação meteorológica no dia do autógrafo do China Miéville em Nova York. Mas lembro nitidamente de saber que, enquanto ele falava, eu sentia, vou perder as palavras exatas. Inclusive, examinando a livraria e a fila de autógrafos pequena, raciocinava, pouca gente veio vê-lo, até quando fazemos leituras de poesia em espanhol aqui, vem mais gente para assistir.
O interessante é que, muitos anos depois, não perdi absolutamente nada. O precioso segue aqui dentro, pulsando.
A melancolia cultive talvez outros sentimentos por meio de uma inversão. Como se diminuindo a velocidade do entorno e abaixasse o volume do mundo, resguardasse uma certa energia anímica. E meu ódio, minha indignação e minha raiva pulsam brilhantes e intocáveis, longe dos desejos dos donos de redes sociais. Ou se transmutam numa alegria bruta, cintilante. Tudo a salvo por essa força estranha e ambígua.
Que nos permite olhar longe e incendiar-se de vida.
Canção errada e verdadeira
Descobri esses dias que canto por uns 30 anos uma música de forma errada. Você conhece a canção, pois é onipresente, do elevador à espera de dentista, da pista de dança à festa no vizinho:
If you need a friend
Don't look to a stranger
You know in the end
I'll always be there
A música chama-se Promisse, do grupo inglês When in Rome, numa onda que se denomina "synth-pop" ou "new wave", com lançamento da canção em 1988 — vocais de Clive Farrington e Andrew Mann, e teclado de Michael Floreale. Alerto que sou ruim dessas coisas, estou colando da Wikipédia, se quiserem corrigir ou complementar nos comentários, agradeço.
A canção diz: "se você precisar de um amigo/ não procure um estranho/ você sabe que, no final,/ sempre estarei lá." (desculpe declinar "friend" no masculino, mas foi mais simples a solução).
A parte louca: sempre cantei ao contrário!
Com muita convicção, adolescente dos anos 1980, sem internet para confirmar as letras de músicas e só folheando revistas Bizz dos outros, sempre cantei "se você precisa de um amigo, procure um estranho".
Claro que os versos ficavam confusos na sequência, mas quem precisa de lógica nos anos 1980?
Uma parte de mim segue convicta que esse deslize tem muito de verdade.
Entrevista: Linguagem Guilhotina
O Cristhiano Aguiar, da newsletter Linguagem Guilhotina, fez uma entrevista comigo sobre a escrita e a ficção científica. Sinto-me muito honrada em participar e ficaria feliz se você lesse.
"Sinceramente, considero que o espírito de nossa época não nos permite entender o mundo sem meditar sobre a tecnologia, para mim, a tarefa última da ficção científica e há chances de assistirmos uma ampliação dessas ideias aqui." — na íntegra aqui
Newsletterverso
Por que o Vale do Silício deveria reler Mary Shelley? Pensando o Complexo de Frankenstein em tempos de Big Techs. Thais Nunes escreve muito bem sobre a ética na criação e o PL das fake news.
Burnout na era da positividade. Trabalho, disciplina e a vontade de mandar tudo para o raio que o parta. Sempre vale indicar uma edição da Segredos em Órbita da Vanessa Guedes.
Tristezas de Estimação não poderia ficar fora da lista. A Fabiane Guimarães trata a respeito da vida de escritora e muitos outros temas.
A vida é um jogo de pega-varetas. A vida não é um jogo de pega-varetas. Já que estamos nesse humor filosófico, termino minhas indicações por essa edição linda do Thiago Ambrósio Lage.
Agenda de junho: só coisas bonitas
🌿 Filamentos: ninguém está a sós
O Filamentos segue sendo um dos meus projetos mais queridos. Trata-se de uma atividade on-line para discutirmos literatura e ecologia, que mantenho junto com a editora Bandeirola.
A Alice Stock conta, em sua newsletter, sobre como o pensamento ecológico entrou em sua vida e sobre a participação do projeto (me emocionei muito ao ler): "Breve história das minhas preocupações ecológicas. E a importância de ter companhia para pensar".
Se vir conosco, em 24 de junho, vamos discutir a excelente novela do Daniel Galera, "Bugônia" (está no livro O deus das avencas, ed. Companhia das Letras), assim como o magnífico O cogumelo no fim do mundo: Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo, de Anna Tsing, ed. n-1. Basta acessar catarse.me/filamentos2023
✏️ Sábado de Escrita
Se você procura um tempinho para escrever, venha escrever conosco. O Sábado de Escrita é uma atividade mensal, gratuita, com inscrições voluntárias.
Próximo: 24 de junho, sábado, das 9h às 10h30, on-line. Inscrições via Sympla
Convites presenciais
Leituras extraordinárias, 2 de junho
A Paula Carvalho e eu seguimos com nossa série Leituras Extraordinárias na charmosa Livraria da Tarde. Sextando com criatividade e dignidade.
Nosso próximo encontro será sobre Eu, Tituba, bruxa negra de Salem, da Maryse Condé (ed. Rosa dos Tempos), com a presença especial da Maria Carolina Casati.
Estou muito empolgada! Venha, para participar, não precisa ter lido o livro antes. A atividade é gratuita.
Leituras extraordinárias. 2 de junho, sexta-feira, a partir das 19h. Livraria da Tarde. Rua Cônego Eugênio Leite, 956, Pinheiros, São Paulo (SP).
Circolo de Leituras, com Maria Carolina Casati
Aproveito para divulgar o Circolo de Leituras, com a mediação da Maria Carolina Casati. Encontros mensais às quartas, 19h, na sede da Associação ACLI SP, entidade que promove a língua e cultura italianas. Os livros escolhidos possuem desconto na Livraria Gato Sem Rabo.
Circolo de Leituras. Av. Ipiranga, 318, 13º andar, metrô República, São Paulo (SP). Mais informações no instagram @Encruzilinhas.
A Feira do Livro, estande da Bandeirola, 10 de junho
No feriado de Corpus Christi, de 7 e 11 de junho, acontece A Feira do Livro, no Pacaembu. Adorei a edição no ano passado e estou bem animada para esta!
Participarei de um bate-papo no sábado de manhã, no estande da Bandeirola, sobre literatura e ecologia, prestigiando o lançamento do livro de crítica do George Amaral, Um estranho tão familiar. Venha me dar um abraço!
Lançamento de Um estranho tão familiar, de George Amaral. A Feira do Livro. 10 de junho, sábado, 11h. Estande da editora Bandeirola. Praça Charles Miller, Pacaembu, São Paulo (SP). Gratuito.
Muito obrigada!
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Para hoje e todos os dias de 2023:
todo poder à alegria, ao desejo e à imaginação!
📚 Na força da melancolia
Que bonita a imagem da melancolia abaixando o volume do mundo e preservando a vida dos outros sentimentos ❤️
sucesso nas próximas semanas por aí e sempre!!!!
Melancolia é algo sempre presente em meu cardápio emocional, e muitas vezes ela surge sem avisar, quando preciso de uma mudança de marcha. Lembrei de uns versos da Página do Relâmpago Elétrico, de Beto Guedes, que têm me rondado bastante:
“Encontrar o coração do planeta/ e mandar parar/ pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas/ fazer um minuto de paz/ um silêncio que ninguém esquece mais”
E um estranho... é um amigo em potencial, né? Agora só vou cantar a sua versão, When in Rome que me perdoe!
Obrigado pela reflexão nesse domingo ensolarado e agridoce e também pela citação!
E boa viagem à cidade eterna, que mais estranhos se tornem amigos!