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📚 Lygia, você me enganou
“O censor chegou até a página 72 e não foi adiante porque achou o livro chato”. Alucinação e leitura de "As meninas", de Lygia Fagundes Telles.
Olá!
Tudo bem por aí? Obrigada por ler a Anacronista!
É a mesma newsletter de sempre, mas com novos ares, agora na plataforma Substack. Se você chegou agora, agradeço por acreditar no projeto. 💌
Decidi compartilhar, de agora em diante, causos de bastidores, pois há muitos achados legais e curiosidades na pesquisa e na criação de textos.
Um abraço e boa leitura!
Como Lygia Fagundes Telles me enganou direitinho (mas não meu coração)
Hoje separei um achado que envolveu a pesquisa sobre As meninas, de Lygia Fagundes Telles. Precisava escrever um texto de responsabilidade sobre o romance publicado em 1973.
Sempre fico nervosa nesses casos e começo a mergulhar para ver se as águas profundas da pesquisa me acalmam.
A parte fácil foi ler e reler o livro, até começar a me atrapalhar com a maçaroca da narração, procurando separar a tríade com a voz das três mulheres, Ana Clara Conceição, Lia de Melo Schultz e Lorena Vaz Leme. Pior: não são narradoras confiáveis. Assim, era um olho da narrativa e olho nos sentidos ocultos.
Aos poucos, comecei a ter uma alucinação, na qual via a Lygia com uma gargantilha com spikes, meia arrastão rasgada, alfinetes no casaco preto, batom escuro. Aos poucos, aquela senhora de camisa branca, tão orgulhosa ao falar da Associação dos Antigos Alunos das Arcadas, a Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, ia se tornado uma figura absolutamente contracultural, com botas pesadas entre os ruídos industriais da cidade.
O mesmo acontecia com a capa do livro. As meninas, no lugar de carregar umas flores e letras serifadas comportadas, agora era rosa-choque, feita na xerocadora e na colagem. Na alucinação, via o livro como talvez fosse no meu coração: um livro pesado, com sexo, drogas, comunismo, tretas, morte. A capa fofa diluía-se na violência das colagens sobrepostas, nas narradoras se alternando, com suas dúvidas, seus afetos ferozes.
Olha, meu coração se engana. Mas não foi dessa vez. Aos poucos, entendi que foi justamente essa alucinação que salvou o livro!
Afinal, minha pergunta mais intrincada da pesquisa era: como um livro desses, absolutamente punk, conseguiu escapar da censura?
O AI-5 destruiu a literatura brasileira. Quebrou tantas imaginações. Além de ativamente impedir livros de serem publicados, afugentou muita gente da carreira, inclusive editoras. Criou paranoias, autocensuras, medos justificados. É incalculável o prejuízo da violência desse período.
Mas a Lygia, apesar de tudo estar em contrário, conseguiu infiltrar As meninas.
A própria escritora tem uma teoria: “o censor chegou até a página 72 e não foi adiante porque achou o livro chato” (Conspiração de nuvens, Rocco, 2007, p. 65). Lembro de desmontar ao ler isso. Será que nem o censor, pago para proibir coisas belas, conseguiu notar a potência do livro? A maldita invisibilidade da literatura escrita por mulheres no século 20?
Hoje entendo perfeitamente. É o disfarce da Lygia para conseguir ser punk e libertária numa época tão adversa. Também é o que move o subterrâneo de As meninas. Quando Lygia nos deixou, parte de seu disfarce foi mostrado: a escritora já tinha 103 anos quando faleceu (e não 98, como noticiado).
Sempre choro um pouco ao pensar em As meninas. É tão formidável. Obrigada, querida autora.
***
A publicação: o artigo (sem alucinação nenhuma) foi publicado no Suplemento de Pernambuco em novembro de 2018: “As meninas” e a convicção da amizade nos tempos de crise.
Trouxe esse causo de bastidores, pois estou fazendo uma série sobre censura no meu Instagram, não podia deixar de mencionar o AI-5 e lembrei da pesquisa para esse texto. Espero que tenha gostado!
Lygia Fagundes Telles move paixões e seu falecimento deixa-nos com saudades apertadas. Assim, se quiser, compartilhe algo bonito sobre a escritora.
🔥 Incêndio na Escrivaninha com temporada nova: Emoções
Não faria nada sem a companhia inteligente de Thiago Ambrósio Lage (da newsletter Mercúrio em Peixes) e Vanessa Guedes (da Segredos em Órbita), com quem compartilho a bancada do Incêndio na Escrivaninha, podcast que está com temporada nova no ar!
Ouça o novo episódio: #44 Nova Temporada: emoções
📚 Robozinhos girando pela galáxia!
“O mistério da Contrabandista” segue fazendo sucesso. Depois da história do pequeno robô ser traduzido para a revista argentina Próxima, na edição Nova Ficção Científica Latino-Americana, e ser analisada no podcast espanhol Escritoras de Urras.
A versão em português está no Kindle Unlimited. Com posfácio de Cláudia Fusco e capa de Stephanie Marino. Um conto simpático para alegrar seu dia.
Escrevi um conto novo sobre robôs para a antologia Terrores Latinos, da editora Luva. Nessa história inédita, trago plantoides, o mito de El Dorado, um animal imenso e a ganância colonial para explorar minérios brilhantes. A antologia está com financiamento coletivo aberto. Para apoiar, segue o link no Catarse.
🌿 Neste sábado, no Reserva Cultural
Para quem estiver na cidade de São Paulo, estarei com o George Amaral na livraria do Reserva Cultural, no prédio da Gazeta (Av. Paulista, 900) para falar sobre "Ecologia e Ficção Científica no Antropoceno".
Se puder, venha me dar um abraço!
Sábado, 27 de agosto, das 9h às 10h30. Somente 15 vagas
Tarifa: R$ 42,00. Inscrições: e-mail vitor@livrarianoreserva.com.br
Apoio: Reserva Cultural, Livraria no Reserva e Editora Bandeirola
🚀 80 anos de WorldCon
Participarei novamente da WorldCon! Dessa vez será a 80th World Science Fiction Convention, a maior conferência de ficção científica do globo. A edição comemorativa de 80 anos terá sede em Chicago, com programação virtual, da qual participo. Caso você se anime, aqui vai o site: https://chicon.org.
💚 Para fechar bonito, versos finais do poema “Passamanaragem”, de Leonardo Fróes:
“Só as aves entendem
o que estou olhando ao longe
sem pensar mas sentindo
minha insignificância perfeita.”
Bonito, não? Retirado do livro “Sibilitz” (1981).
É isso! Espero que tenha gostado da news!
Você pode escutar também a newsletter, adaptada ao formato de podcast. A trilha sonora é “ANBR”, de Voyage.
📚 Lygia, você me enganou
Já conhecia essa declaração da Lygia sobre a censura em "As meninas", mas tão bom ler seu texto sobre ela! Digo que Lygia foi quem me iniciou na literatura, tanto em leitura quanto em escrita. Fui me meter a escrever pra tentar entender como era possível dizer as coisas como ela dizia. Ainda não sei, mas sigo apaixonada no mergulho <3
O universo faz tudo certinho. Inseri esta obra na lista de leitura do meu clube do livro e encontro essa pérola aqui. Vou recomendar a leitura para o grupo.
Ah, como já percebeu, criei a newsletter ontem, seguindo seus conselhos, mentora.
Animada e apavorada.
beijo, menina