📚 Literaturas da imaginação: exercitando utopias
Bastidores da última WorldCon, que completou 80 anos. Depoimentos de escritores e indicações a respeito de utopias literárias.
Olá!
Tudo bem por aí? Espero que sim.
Obrigada por prestigiar a Anacronista! E para quem chegou agora, muito obrigada por acreditar no projeto. 💌
Caprichei nesta edição, trouxe depoimentos de escritores e indicações de tendências a respeito de utopias, com muito amor às literaturas da imaginação.
Um abraço e boa leitura!
Uma forma de arte tão especial
Participei de minha terceira WorldCon, a convenção mais importante de fantasia e ficção científica, estive em mesas redondas sobre utopias e distopias, mudança climática e produção latino-americana (foto acima, com Thiago Ambrósio Lage, Iana A. e eu, os três do Brasil; com moderação de Valerie Valdes, dos EUA).
Esta edição de 80 anos da WorldCon teve sede em Chicago no início de setembro. Além de uma programação extensa, durante a convenção, ocorre a entrega do Hugo, o prêmio mais importante dessas literaturas.
Tudo é em inglês, o que faz com que a produção estadunidense domine os tópicos, assim como a britânica e a canadense. Entretanto, sinto que, com a abertura à participação virtual, pessoas de outros países estão sendo mais acolhidas, com uma curiosidade genuína sobre nossa produção. Anoto ainda que Ursula Le Guin e Octavia Butler foram citadas em muitas mesas, algo que observo no Brasil também.
Por que a convenção é tão especial? Pedi ao Leonardo Espinoza Benavides, escritor chileno, me responder essa:
"Participar de uma WorldCon carrega consigo aquele toque da alegria da peregrinação para um reencontro: atender ao chamado de uma grande comunidade, conhecer novas pessoas e reconectar-se com velhas amizades. Botar em dia a conversa do que acontece em outros lugares e também compartilhar notícias de nossas próprias terras.”
O Leo ainda ressalta a construção “movida pelo amor a uma forma de arte tão especial como a ficção especulativa”. É engraçado, não conheço o Leo pessoalmente, mas me sinto muito próxima desse meu amigo, médico e escritor, nome fundamental da produção chilena [acompanhe o Leo no Youtube, em inglês].
O desafio da imaginação: sair da paralisia
Construir utopias (e falhar miseravelmente ao construir uma) é uma das tarefas mais bonitas dessas literaturas. Afinal, a roda utópica serve para desafiar a ordem posta das coisas e responder à Margaret Thatcher que dizia “não há outra alternativa”, que, sim, há muitas outras possibilidades de vivência além da vida sob neoliberalismo.
Sair desta paralisia que a distopia atual nos apresenta não é uma tarefa fácil, pois a imaginação, assim como outras faculdades imaginativas, precisa ser desafiada e nutrida.
Três depoimentos sobre criar mundo utópicos
Especialmente para a Anacronista, solicitei a três escritores enviarem considerações sobre a questão utópica: o que é fundamental para criar uma utopia?
Juntos, participamos da mesa redonda “Outros mundos possíveis” na última sexta-feira. Como as mesas gravadas só ficam disponíveis para quem participou do evento, decidi trazer estes tópicos do debate para compartilhar algumas ideias com uma comunidade maior.
A escritora Jo Miles, de Maryland (EUA), começou, trazendo o ótimo conselho para quem gosta de escrever:
“Ao criar uma utopia, tenha sempre em mente para quem se destina essa utopia. É fácil cair na armadilha de construir uma utopia somente para algumas pessoas à custa de outras (algo que vemos frequentemente na ficção científica). Lembre-se ainda sobre quem se beneficiará e quem se sacrificará em prol do sistema.
Durante nossa mesa redonda, discutimos que até seria possível criar utopias para todas as pessoas, mas isso é muito difícil de imaginar. Requer mais mudanças sociais do que mudanças tecnológicas.”
Sultana Raza, escritora indiana residente na Europa, pesquisadora com ênfase em Keats e Tolkien, acrescentou o seguinte:
“Acho que a maioria dos mitos são sobre o paraíso perdido. A ideia de criar uma utopia, ou mesmo de recuperar uma utopia perdida, remonta a tempos míticos. Por exemplo, no grande mito indiano “Ramayana” há uma espécie de utopia dentro do reino de Dasharatha. Mas sua segunda rainha solicita uma dádiva: mandar o herdeiro do rei, Lord Rama, para o exílio numa floresta por dez anos. É aí que começam os problemas e, embora Lord Rama consiga recuperar seu reino e estabelecer Ramaraj, isso não ocorre sem um preço.
Concordo com a Jo Miles: uma utopia não deve ser criada à custa de injustiças ou à custa da energia e da capacidade de outras pessoas. Mas também é interessante olhar para os aspectos microcósmicos e macrocósmicos das utopias — se compararmos a utopia individual com a utopia de uma sociedade inteira, de determinado país ou planeta.
Utopias são importantes para manter o equilíbrio e a harmonia, sem os quais a manutenção de qualquer sociedade estaria ameaçada. Por fim, uma ideia fundamental, no largo prazo, é criarmos um mundo sustentável, uma utopia sintonizada com nosso meio ambiente.”
Nick Hubble, escritor e professor na Universidade de Brunel University (Reino Unido) traça a seguinte consideração:
“A utopia não é um estado fixo, capaz de responder a todos os problemas, e sim um processo, requerendo um envolvimento constante com os outros. Esse é o motivo pelo qual tantas narrativas utópicas famosas, como “Os despossuídos”, de Ursula Le Guin (ed. Aleph), retratam utopias ambíguas, para mostrar que as pessoas aprendem com erros. Por mais improdutiva que pareça, nossa luta de hoje é o que torna possível um futuro utópico. Quando pensamos no que fazemos, é necessário imaginar o tipo de sociedade em que queremos viver e como isso seria válido para todos.
A ideia da utopia carrega consigo questões éticas, pois os valores dominantes hoje e o ordenamento jurídico atual entram em conflito com os valores das sociedades utópicas que gostaríamos de ver no futuro. O romance clássico de Marge Piercy, “Uma mulher no limiar do tempo” (ed. Minna), ilustra maravilhosamente como a própria possibilidade de uma sociedade utópica futura depende do aprendizado de viver conforme os valores desse futuro no tempo presente.”
📚Para seguir lendo
Sobre leituras, Jo Miles recomenda o livro da Becky Chambers, vencedor agora do Hugo, "Salmo para um robô peregrino” (ed. Morro Branco), uma utopia delicinha quando robôs se recusam a trabalhar com humanos.
O Nick publicou o artigo “As utopias radicais de Ursula Le Guin continuam ressoando”, na Jacobin Brasil e tuita no @Contempislesfic.
Se você lê em inglês, a Jo publicou “The Census Faces Unusual Challenges on Audvarn-3”, na revista Fireside Fiction; e “Grow, Divide, Sacrifice, Thrive”, na Metaphorosis. Vale ainda assinar a newsletter dela e a seguir no twitter @josmiles.
A Sultana publicou “Refugees from OneNote Planet” e “Daisy’s brush with Pegasus”. Deixo ainda uma seleção de poemas seus. Você pode seguir a Sultana no Twitter @Sultana_Tara1 e no Facebook.
🌿Utopias climáticas: lançamento de Meteotopia
Junto com Bodhisattva Chattopadhyay e Francesco Verso, organizamos a antologia “Meteotopia: Futures of Climate (In)Justice”, lançada pela Co-Futures, da Universidade de Oslo; e pela FutureFiction, editora italiana.
O livro reúne contos de Aline Valek (Brasil), Chinelo Onwualu (Nigéria), Gabriela Damián (México), Mame Bougouma Diene (Senegal), Soham Guha (Índia), Tlotlo Tsamaase (Botswana), Toni Moraes (Brasil) e Victor Fernando R. Ocampo (Filipinas). A capa é da artista Valeria Chiara Bucceri.
Organizar o livro foi um trabalho extenso, emocionante, com desafios tradutórios significativos.
Essa reunião especial pode ser lida gratuitamente em inglês aqui:
🌿 Filamentos: encontros sobre ecologia e ficção científica
Em conjunto com a editora Bandeirola, organizamos o Filamentos, um projeto com encontros mensais, newsletter específica e um grupo para discutirmos a literatura e mudança climática.
Neste sábado, 10/9, teremos um encontro, às 16h, via Zoom
Tema: Ecocídios em tempos de “paz”
Para conhecer o projeto, assistir os encontros anteriores e participar: catarse/filamentos
✏️ Sábado de escrita: para quem gosta de escrever
No dia 17 de setembro, às 9h, teremos mais um Sábado de Escrita. Encontrar um horário calmo para escrever não é das coisas mais simples. Assim, esta atividade guiada oferece um momento especial no mês para nos dedicarmos a escrever. Gratuito, inscrições via Sympla.
🚀Uma excelente notícia: contos reunidos de Dinah Silveira de Queiroz
Venho celebrar o lançamento de “Dinah Fantástica: contos de ficção científica reunidos — Eles herdarão a Terra e Comba Malina”, pela editora Instante. Logo mais, o livro entra em pré-venda.
Tive a honra de escrever o pósfacio do livro, com contos publicados entre 1960 a 1969, cuja crítica e imaginação seguem urgentes no Brasil atual.
💚 Para fechar bonito, poema do Drummond:
Science-fiction
.
O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência?
Afastou-se o marciano, e persegui-o
.
Precisava dele como de um testemunho.
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se
no ar constelado de problemas.
.
E fiquei só em mim, de mim ausente.
De Carlos Drummond de Andrade, In Lição de coisas (1962)
É isso! Espero que tenha gostado da news!
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Ana, adorei seu post. te conheci na Casa das Rosas há muito tempo. Hoje moro em Canela (RS) e lecionou no curso de próprio autoria, Narrativas Breves, na Universidade de Caxias do SUL.
Acabo de lançar o livro Atrás das Cortinas que pretende ser o primeiro de três.
Que delicinha de carta, Ana! Vou ler o livro indicado e os artigos. Amo ficção científica e respeito quem se propõe a fazer um trabalho que engloba prazer e reflexão.
Obrigada por trazer estas joias de informação.
beijo, menina