O demônio ataca a pilha de livros não lidos
Um ensinamento filosófico sobre hábitos de leitura. Como muita gente me perguntava o que fazer com a ansiedade que a pilha de livros não lidos gera, escrevi este conto edificante.
Olá,
Essa é a segunda newsletter de 2022!
Junho. Claro que pensei “Ana, que vergonha”, mas o primeiro semestre foi tão meteórico e exaustivo, que estou muito feliz em finalmente ter encontrado um tempo, ao lado do meu cão dorminhoco, para rascunhar uma cartinha no capricho.
Obrigada por me acompanhar!
A newsletter de hoje traz um ensinamento filosófico sobre o demônio e a pilha de livros não lidos, resultado de uma série no Instagram sobre hábitos de leitura. Como muita gente me perguntava o que fazer com a ansiedade que a pilha de livros não lidos gera, escrevi este conto edificante.
Após o conto, selecionei convites que talvez possam te interessar. A maioria é sobre ecologia e literatura, pois outra notícia é que agora estou fazendo pós-doutorado sobre o tema na Teoria Literária e Comparada na USP (e a pesquisa e a vida são uma coisa só). Espero que você goste!
Com amor, xícara de café e um cobertor com estampa de oncinha no colo,
Ana Rüsche
O demônio e a pilha de livros não lidos
Era no tempo do rei. Uma época lamentável em que as pessoas afortunadas precisaram ficar em casa, pois havia uma maldição à solta nas ruas. Em outros reinos, as pessoas não podiam ficar assim resguardadas e faleceram. Assim, com muito medo, quem podia, ficava no sofá.
Sofia era uma afortunada dona de um confortável sofá e ficou em casa. Mas o sofá era parente do livro. Aos poucos, a afortunada dama desistiu do celular, que só trazia notícias da maldição e retomou um hábito antigo, a leitura. Afundou nos romances de época. Eram boas as tragédias distantes. Depois, passou aos alienígenas, tudo bem longe mesmo.
Após meses, Sofia irritou-se. Cada vez mais descobria livros a serem lidos. Todo dia um novo livro para sua pilha. Aquilo parecia interminável, intolerável. Usou uma palavra recém-aprendida:
— É inconcebível!
O demônio, que não é bobo, se aproveitou. Afinal, de desejos e condenações os demônios são especialistas.
Apareceu na frente de Sofia e declarou:
— Pronto, meu bem, problema resolvido. Terminei com a pilha de livros. Ninguém mais pode escrever ou publicar nada, enquanto neste reino não terminarem de ler o que já está disponível. Quando terminar, me dê um alô, explicou o demônio, estendendo um cartão de visitas com um telefone.
Sofia adorou a notícia! Contou para as amigas, foi o grande trend por dias, explodiu com memes de pilhas de livros e demônios escorrendo nas linhas do tempo.
Passaram-se anos. No Reino Afortunado, seguiram lendo. Era uma questão de honra: terminar afinal com a maldita lista! Criaram orçamento participativo, renda mínima, tudo para que se trabalhasse menos e lesse mais (não aboliram o capitalismo). O rei, obcecado, criou um programa de leitura, coisa que estava há séculos para fazer. O Index Librorum Obligatorium era uma obsessão local.
Escritores fizeram igual Pierre Menard: só podiam escrever, letra a letra, os grandes clássicos. Dom Quixote. O Decamerão. Houve quem escolhesse obras obscuras para trapacear e criar trechos novos, mas sofreram a danação expressa — deportadas ao inferno, onde poderiam escrever à vontade. No início, gostavam. Depois, com os prazos editoriais, a vontade pueril passava.
Houve um momento, então, quando a lista terminou.
Festa no reino! Sofia foi chamada à tribuna, mas o monarca não a deixou falar. Era impressionante: mesmo procurando em sebos, sites mal diagramados, audiobooks, tudo já havia sido consumido pelas chamas de olhos ávidos. Não havia nada mais para ler.
Apesar de tudo, Sofia estava infeliz. Silenciada pelo rei, não tinha mais livros para ler. Fez o esperado telefonema ao velho amigo.
Do outro lado da linha, o demônio lixava as unhas, com os pés na mesinha com um abajur cor-de-carne. Parou um minuto, escutou Sofia e declarou:
— O quê, meu bem? Você terminou? Já? O quê você quer agora?
Colocando o telefone no gancho, o demônio revirou os olhos. É muito difícil ser demônio quando as pessoas já escolhem sofrer o tempo todo.
Num passe de mágica, o demônio desfez a proibição. Livrarias reabriram, editoras voltaram a publicar. Em poucos meses, a afortunada Sofia voltou a reclamar do tamanho da pilha. Com um brilhinho atrás dos óculos.
Que a pilha sempre cresça!
Filamentos, um espaço para ficções ecológicas
Amanhã, neste sábado, 9/7, 16h, haverá encontro online do projeto Filamentos, vamos conversar sobre ideias de Ailton Krenak e de Bruno Latour e a prosa de Dinah Silveira de Queiroz e Ursula Le Guin.
A atividade faz parte do projeto com encontros mensais até dezembro, da editora Bandeirola e meu. Para participar, basta apoiar o projeto no Catarse!
Além dos encontros, que ficam gravados, temos um grupo no WhatsApp. Professoras e professores não pagam. Programa e detalhes na página do Catarse.
Curso no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc
Para quem estiver em São Paulo, ministrarei o curso Ficção Científica e Mudança Climática no CPF — Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. Que saudades de uma sala de aula!
Quartas, de 13 de julho a 3 de agosto, 19h, presencial. Inscrições aqui.
O CPF fica na Rua Dr. Plinio Barreto, 285, Bela Vista.
Bate-papo: “Depois do fim: conversas sobre Literatura e Antropoceno”
No dia 19 de julho, terça, teremos um bate-papo com a Fabiane Secches, Maria Esther Maciel e eu, com a mediação da Maria Carolina Casati. Será na MegaFauna, aquela livraria linda no Copan.
A conversa será sobre esse livro de ensaios, organizado pela Fabiane Secches e publicado pela Instante. Título: Depois do fim: Ensaios de Ana Rüsche, Aurora Bernardini, Christian Dunker, Daniel Munduruku, Fabiane Secches, Giovana Madalosso, Itamar Vieira Jr., Maria Esther Maciel, Micheliny Verunschk, Natalia Timerman, Paula Carvalho, Paulo Scott e Tulio Custódio.
Bate-papo: 19/7, 19h, Livraria MegaFauna. Av. Ipiranga, 200, loja 53. Centro, São Paulo (SP).
A fantástica Le Guin
Fiz uma resenha sobre o Feiticeiro de Terramar, da Ursula Le Guin, para a Quatro Cinco Um [link]. Quem sabe não vira o seu próximo livro? Que a pilha nunca acabe!
Ateliês de escrita?
Logo mais, abrirei vagas para meus ateliês de escrita de agosto a dezembro. São online e ao vivo, aos sábados. Se interessar, basta me responder, que enviarei as informações quando tiver tudo consolidado.
Se quiser pagar um café à escritora, agradeço.
Se vai repassar a newsletter a pessoas interessadas, também agradeço!
Se sorriu no final, minha missão hoje na Terra está cumprida. 💚
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Instagram: @anarusche