A garganta de Cassandra: enchentes no Rio Grande do Sul
Como escrever sobre a catástrofe das enchentes no Sul? Do mito de Cassandra à criação de palavras. A autobiografia política de Vandana Shiva vai nas dicas de leitura.
Olá!
Aqui vai uma edição da newsletter marcada pela dúvida. Como escrever sobre tudo isso?
Estudo mudança climática e literatura há alguns anos. Nada que possa nos preparar para a catástrofe real. De coração apertado, aqui vai uma edição para compartilhar esse paradoxo físico-mental do estar perto e estar longe das águas do Rio Grande do Sul.
Nas dicas de leitura, separei a autobiografia política de Vandana Shiva, uma longa trajetória de luta para nos inspirar em momentos difíceis.
No mais, estou preparando, junto com a equipe do Filamentos, uma edição especial da Anacronista: vamos transcrever e transformar em texto uma fala da escritora e historiadora Nikelen Witter, de Santa Maria (RS). Sairá na sexta-feira! Não deixe de assinar a newsletter para receber.
Agradeço especialmente a quem apoia este projeto e torna tudo isso possível 🧡
Espero que essas palavras possam trazer algum conforto ao outro lado.
Com apreensão, mas também com esperança, mando meu carinho.
Ana Rüsche
Palavras desterradas, a garganta de Cassandra 📚
Um veleirinho na Asa Norte
Estava tentando domar um veleiro pequeno no meio do Lago Paranoá. A embarcação ora adernava perigosamente ora respondia rápida demais a qualquer toque meu ao leme. O veleirinho vai muito veloz. E a única certeza: o barco pode virar (afinal, começamos o curso aprendendo a desvirar um barco).
De longe, tudo bem trivial. Passavam por mim jet-skis, esses sim em grande velocidade, e lanchas aceleradas, com o sertanejo no talo e o cooler cheio de latinhas. Da margem distante, era possível avistar o topo dos prédios da Esplanada dos Ministérios.
De perto, o descomunal: segurar aquele vento e ainda tentar fazer manobras. O veleirinho podia ficar rodando no meio do lago, eu já tinha feito essa coisa ridícula noutra aula — um ridículo que me enche de angústia e de felicidades, pois sentimentos contraditórios caminham de mãos dadas. Nessa hora, impossível não lembrar da Ursula Le Guin: quando ela constrói o aprendiz de feiticeiro Ged, em O Feiticeiro de Terramar, o rapaz sopra um encantamento na vela de sua embarcação.
É um ato quase lógico, imaginar que o veleirinho é encantado. Não há motor. É a pura força do vento fazendo esse deslizar espantoso sobre as águas. Impossível não ver a magia desse movimento. Forças mágicas imensas. As forças intrínsecas mais enraizadas de nosso Planeta.
Do meio do lago, reparo nas cores daquele céu incrível da capital federal, de um violeta violento até ao anil desbotado. Mesmo ali, no meio da água espelhada de azul, naquela mistura de felicidade aprendiz, há um pensamento que não me larga — o outro lado do país, a quilômetros de distância, na região sul do Brasil, o motivo da fragilidade de minhas últimas noites de sono, as notícias da catástrofe.
A enxurrada de notícias
No estado do Rio Grande do Sul, fiz muitas amizades. Gente que se dedica à literatura fantástica, ao insólito ficcional, para onde viajo de tempos em tempos para me nutrir criativamente. De lá, trouxe, encarapitado na minha omoplata igual um papagaio de pirata, um camaleão de tinta, minha primeira tatuagem. Além disso, percebo quanta gente do meu círculo possui laços por lá — são irmãs, irmãos, tias, avôs, mães, amores.
Em diferentes grupos no celular, relatos de tragédia vão se alastrando. Se não chegam, vasculho vídeos terríveis no Tik Tok. Reviso também notícias e relatos de outra parte do país: sobre Rio Branco, quando o rio Acre espalhou enchentes devastadoras em março, poucos meses depois da seca severa.
Aquela enxurrada de notícias contamina minha corrente sanguínea e o azul que me cerca no barquinho se assombreia. As coisas parecem todas sem o menor sentido. Daí lembro da Ursula Le Guin. E do papel da arte: conceder sentido às coisas mais disparatadas. Amarrar, de alguma forma, as experiências desconjuntadas. Ajambrar sentimentos. Criar um espaço de esperança possível em meio à crueldade da catástrofe.
Cassandra, um mito fundador
A arte criou o mito de Cassandra. Uma história que pode oferecer alguma liga imaginária a essa quantidade mal-ajambrada de fatos. A sacerdotisa que fez a previsão de um acontecimento terrível, algo que poderia ser revertido. Mas ninguém escuta Cassandra. Ninguém a leva a sério. E o acontecimento terrível torna-se real e engolfa a todos.
Olha, somente um mito muito antigo para dar conta da crueldade da situação atual. Uma lenga-lenga também muito contemporânea no qual todo mundo sabe a previsão, mas insiste em não escutar.
No caso específico da região Sul, se nós temos órgãos que fazem medições de desastres, equipes da geologia e da meteorologia, tanta gente séria fazendo a previsão, por qual motivo nunca foi feito nada? Por qual motivo foi a verba destinada insuficiente para prevenção? Por qual motivo não se tem nas escolas e nos bairros treinamentos de brigadas contra desastres? Por qual motivo não se estabelecem rotas de fuga e cartilhas populares sobre enchentes? Cassandra cospe perguntas histéricas, as perguntas originárias daq uela parte do corpo que gera dor e vida.
Deixo deslizar vídeos da região sul na minha tela do celular. Escorrem imagens de lugares que conheço bem — uma foto, em específico, me marca. A pista de corrida perto do Gasômetro, no centro de Porto Alegre, inundada, no mesmo lugar em que meses antes fiz um treino enquanto meu amigo escrevia nas escadarias. Desapareceu. Lembro de notar as margens do Guaíba já cheias, lambendo por completo algumas árvores. A mesma língua de Cassandra.
De tempos em tempos, observo minhas mensagens enviadas a pessoas queridas via WhatsApp com só um risquinho. Não sei se chegaram ao destino. Pensar nessas pessoas amadas, em lugares sem água e luz, termina sendo um exercício silencioso de telepatia, quase uma reza da descrença. Que um pouquinho disso atravesse todo esse ar.
A dor vaga, a palavra desterritorializada
Nikelen Witter, escritora e historiadora, ao comentar toda a situação desde Santa Maria (RS), durante o último encontro do Filamentos, falou algo que me marcou: uma psicóloga estava solicitando que outras pessoas da área se voluntariassem a realizar atendimentos.
Era fundamental deixar as pessoas atingidas falar, pois estariam desterritorializadas, "haviam perdido as suas conexões com a sua história e com a sua identidade".
Quando se perde a própria casa, o lugar de conforto; ao perder uma vizinhança, um lugar de referência; ao perder uma cidade, o lugar de memória; é preciso se reconstituir como pessoa. Nem vou chegar nas perdas de pessoas, cachorros, gatos, peixes, grilos, cigarras, formiguinhas. Um trabalho de luto e de luta demorado e doloroso. Imenso e intenso.
As palavras da Nikelen bateram fundo aqui. Por coincidência, estou escrevendo, agora em maio, um artigo científico justamente sobre o conceito de solastalgia — um termo cunhado por Glenn Albrecht, no início do século, para tentar oferecer um marco conceitual sobre a experiência de perda de espaços biofísicos e nas paisagens em que vivemos e chamamos de "lar".
Entretanto, diante do que observo agora, essa palavra melancólica e comprida, solastagia, não me parece apropriada, como se não fosse capaz de expressar a violência do que observamos. O sequestro brutal do mundo. O soco do susto. A tirada de chão. O arrancar da terra, pois terra já não existe mais.
Vamos ter que inventar palavras, inclusive, para descrever isso. Ajambrar os escombros e realinhar os sentidos em direção à Mudança.
Sonhos paradoxalmente reais
De algum modo, quando decidi colocar todos os meus esforços acadêmicos nesse tema desvairado (a crise climática), me inseria no corpo maior na garganta rouca da giganta Cassandra, vibrando conceitos de cientistas, ambientalistas, políticos e sonhadores.
Não sei se a mensagem chegará. São como as mensagens somente com uma única marquinha no WhatsApp.
Apesar de tudo, talvez isso não importe tanto. Seguimos na busca de tecer sentidos, procurando uma camada comum para costurar sonhos reais, no método de sempre — pessimista na análise e otimista na prática. Poetas dos sonhos de uma realidade mais ampla. Essa ação talvez ultrapasse as mensagens presas nas fibras óticas momentaneamente rompidas. Alguma coisa há de chegar.
Tudo isso me leva a tentar respirar dentro do pequeno veleiro encantado, no meio do céu espelhado, que também era lago, fundido técnica, corpo, ar e água em uma substância única indistinguível, um amálgama que também pode ser o próprio planeta. A certeza da escala ameaçadora de minha própria insignificância diante do céu imenso. Já não importa o que ouçam, pois eu sinto, adernando todo o casco ao prumo da razão. O vento enfuna afinal a mente de esperança e de poesia, a matéria-motora dos sonhos, a matéria-prima da vida.
📚 Terra viva, dica de leitura
Indico a leitura da autobiografia política de Vandana Shiva: Terra viva — Minha vida em uma biodiversidade de movimentos (trad. Marina Kater, Boitempo). A ativista indiana aborda seus anos de formação, as lutas de sua família e a união de diferentes conhecimentos, do tradicional ao acadêmico.
"Se a lição da terra é que a saúde está na diversidade e não na monocultura, Vandana Shiva segue coerente em se engajar com lutas que se alinham com esse princípio. Por isso, a autoria dessa linha de frente contra a colonização, em suas múltiplas faces, também é composta de uma polifonia de vozes de mulheres, povos originários, pessoas agricultoras e trabalhadoras em geral." — Geni Núñez sobre o livro.
Caso queira assistir, participei da live do lançamento da obra, "Soberania alimentar, sementes e luta pela terra", junto de Geni Núñez e João Pedro Stédile na TV Boitempo.
O próximo encontro on-line do Filamentos, atividade para conversar sobre literatura e ecologia, será no sábado, 8 de junho, às 14h. Para participar, basta apoiar o projeto no Catarse.
É imperativo ser ambientalista
Quando comecei a pensar no que ia falar, pensei em começar com aquela frase feita “eu não sou ambientalista”. Mas neste momento, temos que começar a dizer: todos nós somos ambientalistas. Não é somente uma questão de estudo sobre a estrutura ambiental. É questão de sobrevivência efetiva, sobrevivência do coletivo. — Nikelen Witter
No último sábado, tivemos um encontro especial do Filamentos — Ecologia e Literatura, um projeto que mantenho com a editora Bandeirola desde 2022. A escritora e historiadora Nikelen Witter foi nossa convidada e falou conosco diretamente de Santa Maria (RS).
A fala da Nikelen foi muito potente. Vamos transcrever e veicular essa fala numa edição especial da Anacronista nesta sexta-feira. Para receber, não deixe de assinar.
Sincrônicas
Duas de indicações de outras newsletters sobre a região Sul.
Segredos em órbita: Vanessa Guedes fez uma edição primorosa, "O amor afogado numa enchente — o Rio Grande do Sul e um desabafo curto". A Vanessa indica também vários canais de doação via Pix.
Queria ser uma Turritopsis nutricula: Vitória Vozniak escreve "Quando a catástrofe está avançando pela porta de casa — um desabafo e um pedido de ajuda"
Dois convites para São Paulo
📚 Leituras extraordinárias
Exploração, de Gabriela Wiener (trad. Sérgio Molina, Todavia) é o livro escolhido por Paula C. Carvalho e eu para o Leituras Extraordinárias de maio, atividade que acontece na Livraria da Tarde. 27 de maio, segunda. Rua Cônego Eugênio Leite, 956, Pinheiros, São Paulo (SP) Grupo do WhatsApp: somente veiculamos datas e títulos dos encontros.
📚 Manual de sobrevivência na escrita
O George Amaral e eu vamos autografar o Manual e conversar sobre escrever no domingo, 26 de maio, na livraria Martins Fontes, a partir das 15h. Av. Paulista, 509, São Paulo (SP). Manual de sobrevivência na escrita, de Ana Rüsche e George Amaral, ed. Bandeirola. Comprar no site da editora
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Em 14 de maio, às 18h30 em Brasília, vamos ter mais um Encontrinho da Anacronista. É uma conversa ao vivo via Zoom para quem quiser.
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Não foi simples escrever essa edição, muitos sentimentos aqui dentro. Espero que tenha dado certo. Agradeço se puder deixar um comentário.
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Sempre no ponto, Ana. Que texto!
Adorei, Aninha... Como gaúcha que está sofrendo muito de longe por minha família e pelos habitantes de minha Porto Alegre amada, te agradeço imensamente pelo carinho. Vamos nos reeguer, e é não só por nossa força, mas pelo amor de todos os amigos e amigas Brasil afora! um grande beijo. Clarice Dall'Agnol