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📚 A romancista, um desejo monstruoso

anarusche.substack.com

📚 A romancista, um desejo monstruoso

Escrever, na segunda década do século 21, é um ato brutal de amor e de transformação.

Ana Rüsche
Dec 23, 2022
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📚 A romancista, um desejo monstruoso

anarusche.substack.com

Olá!

Como você vai? Que você possa encontrar algum momento delicioso de descanso nesta passagem mágica: a mudança de calendário.

Esta é minha última carta do ano e tem um mote especial: responder a uma outra newsletter. Para contextualizar, em um grupo de pessoas que escrevem newsletters no Brasil, tiramos um amigo secreto. O presente? Claro que é um texto!

Assim, aí vai meu presente a minha amiga secreta, com direito a um poema e tudo.

No mais, essa é a décima edição da Anacronista, depois que migrei ao Substack. Queria agradecer a leitura. Nada faz sentido sem essa curiosidade do outro lado. 

Obrigada por abraçar as palavras comigo 💌

Frase manuscrita "procrastinar com classe" e um círculo com uma foto de uma mulher branca, com abrigo vermelho. Sorri de lado para a foto.

Ler o contemporâneo, um ato de fé

É duro escrever. É muito bom aceitarmos a premissa, pois nos traz uma imensa liberdade. Apesar da caneta, o lápis e o teclado estarem próximos após a alfabetização, conseguir encantar por meio das palavras é uma outra história. 

Assim, minha amiga secreta, compreendo perfeitamente o seu mau humor intelectual de quem não aguenta mais ler romances contemporâneos. Nem sempre a gente consegue, me desculpe. A carta de hoje é para falar como é estar do outro lado do balcão, aliás, da página.

Não existe literatura sem quem a leia. Assim, apesar do aparente contrassenso, a pessoa fundamental de toda a cadeia do livro é quem lê. E se escrever é duro, provar a literatura recém-escrita nem sempre é um gole fácil. Ler coisas publicadas nos últimos cinco, dez anos termina sendo um ato de amor e paciência. Tudo tem sabores ásperos. Tudo ainda não foi fermentado, decantado, filtrado. Tudo está por ser feito, principalmente a longa tarefa da crítica.

Provar coisas novas faz parte de minha profissão. Mas nessa altura, já leio investigando o perfil sensorial da magia entre as juntas do livro, experimento as notas dos feitiços de entrelinhas, enfim, provo reparando na coisa toda da forma literária. Dou-me conta que já não sou mais uma leitora, a marca do híbrido instalou-se nos meus olhos de cor cambiante, nas minhas mãos tentaculares ao segurar a capa. As metamorfoses cobram seus preços. O que perdemos ao virar esse tipo monstruoso, a escritora?

Pausa para um poema

Monstruosidade
Nas frestas do romance, 
a leitora procura algo
nem verbo ou fardo
        nem sal ou mundo
mesmo assim, sonha um sopro
Nas brechas de seus sonhos,
a romancista tampouco encontra
algo, nem carne ou corpo
        nem mar ou fundo
mesmo assim, insiste e transmuta-se

Maçã sobre um livro com cores azuladas.

O problema das professorinhas dedicadas

Entendo perfeitamente a reclamação e o mau humor intelectual. Cito a carta original de minha amiga secreta, “calhei de ler uma sequência de obras que não se contentam a dar uma piscadela marota para o leitor, seu cúmplice; professorinhas dedicadas, elas vão para a lousa e desenham a ironia, a crítica social, em torno da qual a narrativa foi cuidadosamente lapidada.”

A literatura ficou explicadinha demais. A voz da militância. Pudera. Passamos duas décadas do século 21 a apontar coisas por aí — privilégios, palavras carregadas de preconceitos, ações avassaladoras de minorias. Quem escreve no Brasil, principalmente se for mulher, possui tentáculos, precisa traduzir, reapresentar obras, buscar livros apagados. É a dupla-tripla jornada da crítica-escritora-editora-tradutora. Ninguém está em paz escrevendo.

A literatura, com seu espelho deformante, não tinha como emergir límpida. A contaminação do discurso militante é evidente. A mesma reclamação foi atribuída à obra da Pagu, embora Parque Industrial emerja hoje, 100 anos depois da Semana de 22, com o esplendor bruto de sua autenticidade, sua auspiciosa sabedoria formal. Afinal, é o nosso hoje que define o passado. Sempre.

Acho justo que, diante de uma literatura tão afirmada, pois os tempos nos pediram essa raiva, esse rancor, essa explicação exacerbada, esse didatismo terrível, procure-se refúgio nos clássicos. Um dia, já foram livros incômodos, com taninos aparentes. Mas hoje, depois de décadas a descansar, confortam nossa alma, sendo quase indistinguíveis da própria ideia de literatura.

A boa notícia?

Apesar de videntes nunca serem levadas a sério, talvez eu tenha uma notícia boa. Intuo que logo, logo, a literatura contemporânea deixará de ser uma professorinha dedicada para voltar a não ter medo das ambiguidades. As notas cinzentas, os sabores das profundezas, isso tudo que concede embaraço e mistério, retornará às páginas dos livros. Já sinto isso no ar.

Um exemplo é um dos núcleos narrativos da segunda temporada de White Lotus (dir. Mike White, HBO, 2022), que embora não seja literatura, seja uma testada de águas. 

[spoilers leves nos quatro próximos parágrafos]

Um procedimento muito astuto na composição de um dos núcleos narrativos é justamente calcado na defesa da ambiguidade: o embate entre dois casais opostos.

Há dois casais heterossexuais em cena. O primeiro padece de uma eterna lua de mel, com beijos apaixonados e toda futilidade possível de assuntos de gente endinheirada. O segundo casal mal se toca. A mulher, uma advogada sempre lendo, julga de forma mordaz o comportamento do outro casal, “será que gente rica fica com o cérebro atrofiado?”.

A narrativa faz algo muito perspicaz. A tendência de quem assiste é concordar com a tal advogada, sempre honesta e de mau humor, já que a série supostamente critica quem possui fortunas. Afinal, quem quer se ver como uma pessoa inculta?

Entretanto, com o passar dos episódios, vamos vendo que quem detém o mistério e a sedução é justamente a garota rica e loura tida como trouxa. Ao inverter a premissa, mesmo que haja um final moralizante e esse acento chato na monogamia, a narrativa nos leva a um lugar muito mais interessante, pois a história nos devolve o mundo real e suas questões complexas com perguntas.

A incerteza é amiga da arte

Se a arte imita a vida, algo que não podemos temer é jogar com as incertezas, o dúbio. Não acho ruim que passamos quase duas décadas construindo assertividade. Faz parte do jogo. De mudar formas de descrever. Escrever é impor uma imaginação. E muitas das mudanças políticas se iniciam com a mudança de ponto de vista. Talvez justamente por esse último acúmulo fértil e aparentemente excessivo, vamos poder nos arriscar mais.

Mal posso esperar para ler as próximas obras! Imagine, serão obras escritas durante o período da pandemia, sob a égide do desgoverno. Muita coisa honesta e profunda sairá no próximo ano.

A mudança, a única certeza da vida, também chegará às páginas.

Assim, minha querida amiga secreta, Ariela K., desejo um 2023 cheio de alegria e boas histórias! 💌

[newsletter original que respondi nesta edição]

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⭐ “Telempatia”: um título agora em italiano

Celebrando coisas boas, depois de ser finalista do Jabuti, meu livro A telepatia são os outros sairá na Itália!

Será publicado no semestre que vem, pela editora FutureFiction.

Se quiser ler, está disponível de graça no Kindle Unlimited, uma boa leitura para viajar ao Chile imaginariamente nas férias.

“A Telepatia são os outros” na Amazon


📚 Mundos paralelos: livros do selo GloboClube

Mundos paralelos é a nova coleção da Globo Livros para público escolar. Organizei o volume de ficção científica, com contos de Alexey Dodsworth, Enéias Tavares, Iana A, Jim Anotsu, Lady Sybylla, Roberta Spindler, Toni Moraes e Vic Vieira Ramires. Muito bonito contribuir e inspirar novas gerações!

O Oscar Nestarez organizou o de horror, com a participação de Cláudia Lemes, Cristhiano Aguiar, Duda Falcão, Flávia Muniz, Flávia Reis, Márcio Benjamin, Nathália Xavier Thomaz e R. F. Lucchetti. Esses dois livros inauguram o selo GloboClube.

  • Amazon: antologia de ficção científica

  • Amazon: antologia de horror


🌱 Narrativas: futuro e justiça climática

Está disponível um trabalho que organizei junto com norueguesa Co-Futures, iniciativa da Universidade de Oslo, e italiana FutureFiction:

Meteotopia — Futures of Climate (In)Justice
Org. Ana Rüsche, Bodhisattva Chattopadhyay e Francesco Verso

Narrativas de ficção climática com autorias do Sul Global
Com textos de Aline Valek (Brasil), Chinelo Onwualu (Nigéria), Gabriela Damián (México), Mame Bougouma Diene (Senegal), Soham Guha (Índia), Tlotlo Tsamaase (Botswana), Toni Moraes (Brasil) e Victor Fernando R. Ocampo (Filipinas).

Download gratuito [em inglês]


🌿 Filamentos em 2023: ecologia e literatura

Filamentos é um projeto que tenho com a editora Bandeirola, com encontros mensais para discussão de ecologia e literatura.

Festival Filamentos: Janeiro

Com o tema da água, o evento contará com especialistas de diferentes ciências, da oceanografia ao cinema, da crítica literária à ecologia. O evento será online, no sábado 21 de janeiro, das 11h às 15h30. Inscrições via Sympla

Programação 2023

Já temos a programação de 2023, sábados, online, das 14h às 15h30.

Para participar, bastará apoiar o financiamento coletivo via Catarse, cujas inscrições serão abertas no ano que vem.

Se quiser saber mais, deixe seu nome e email aqui: https://forms.gle/w9LQZL5VYtnU3LCZ6. 

  • 25 de fevereiro: Futuro ancestral, de Ailton Krenak; Cidades afundam em dias normais, de Aline Valek

  • 18 de março: “Ficar com o problema: Antropoceno, Capitaloceno, Chthuluceno”, artigo de Donna Haraway; Aniquilação, de Jeff VanderMeer

  • 15 de abril: O pensamento ecológico, de Timothy Morton; conto “Semente”, de Illiana Vargas

  • 20 de maio: A parábola do Semeador, de Octavia Butler; “Conversatório sobre o Bem Viver”, entrevista com Mario Rodríguez Ibáñez

  • 24 de junho: “Begônia”, novela de Daniel Galera; O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo, de Anna Tsing

  • Lançamento do livro de George Amaral pela Bandeirola: Um estranho tão familiar.

Programação sujeita a alterações. Venha vai ser muito bonito!


📖 Dicas de leitura?

Para uma retrospectiva e indicações de leituras para férias, acompanhe meu Instagram: @anarusche

Importante: já estou traduzindo o ensaio de T. P. Mira-Echverría, dando sequência ao debate a respeito do filme “Argentina, 1985” para a edição de janeiro, iniciado em dezembro. Aguarde!


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Para hoje e todos os dias de 2023:

todo poder à alegria, ao desejo e à imaginação! ✨

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25 Comments
Vanessa Guedes
Writes Segredos em órbita
Dec 26, 2022Liked by Ana Rüsche

você mandou para Ariela, mas quem ganhou o presente fomos todos nós junto com ela!

viva o melhor amigo secreto do ano /o/

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1 reply by Ana Rüsche
Surina Mariana
Writes Sofá da Surina
Dec 24, 2022Liked by Ana Rüsche

Gente, viva este amigo secreto das cartas maravilhosas! Estou aqui que nem a Ariela, de saco cheiíssimo do didatismo sem fim... e mais: de tanto ler literatura contemporânea, comecei a duvidar que as sutilezas teriam capacidade de prender o leitor. Acho que rolou um desencantamento do mundo, "tá tudo muito chato, inclusive na literatura". Então obrigada pelo seu exercício de vidente. Talvez o que me falte seja paciência e um olhar com distanciamento. Esta edição tá demais, amei

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1 reply by Ana Rüsche
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