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📚 A falta do meu francês e a partida do filósofo Bruno Latour

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📚 A falta do meu francês e a partida do filósofo Bruno Latour

Uma crônica sobre linguagem e a perda de um imenso intelectual, "un sociologue, anthropologue et philosophe"

Ana Rüsche
Oct 14, 2022
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📚 A falta do meu francês e a partida do filósofo Bruno Latour

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Olá!

O falecimento de Bruno Latour marcou meu domingo. Decidi escrever algumas linhas sobre esse intelectual da ecologia, da esperança crítica e de milhões de outras coisas! Conforme a Wikipedia, un sociologue, anthropologue et philosophe (“um sociólogo, antropólogo e filósofo”).

Apesar das obras de Latour me acompanharem nos últimos anos nas pesquisas sobre mudança climática, leio tudo sempre em tradução. Assim, deixo antes uma crônica sobre as trapalhadas de meu francês, praticamente inexistente.

Agradeço por prestigiar a Anacronista! 💌

Um abraço e boa leitura!


Quem nunca quis sacar um quatre-vingt-deux?

Rio largo, com praias e vegetação tropical. O céu está nublado, com nuvens. O rio reflete o céu, em uma cor barrenta.
Rio Congo, nos arredores de Kinshasa.

Na rivalidade cultural entre Alemanha e França, já tive um destino traçado desde pequena — no colégio alemão, não era incomum críticas a algum hábito francês, algo que hoje atribuo, além do longo período de guerras e disputas de fronteiras, ao fato de ser sempre mais difícil estar do lado menos sexy da balança. Wie schade! (“que pena”, em alemão). 

Ao longo dos anos, a preguiça com uma outra ortografia cheia de letras, com regras mais misteriosas ainda sobre pronúncia, seguiu me afastando desse universo. Escutar um falatório em francês entra na minha vida na universidade, com as idas ao cinema para ver toneladas de Truffaut com amizades, íamos nas sessões mais baratas, nem sei muito bem se eu gostava.

A primeira vez em que estive em território francófono foi em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, um lugar em que o céu esteve nublado por dias e o rio era imenso. Nas experiências linguísticas, lembro de ter tentado negociar com o vendedor de legumes o preço do pepino, haviam me dito antes que pechinchar era de bom tom. Não tinha a menor prática nisso, geralmente pago o preço. Vermelha e atrapalhada, mostrei notas, gesticulei dizendo concombre (“pepino”, em francês) e, como nada parecia dar certo, dizia quatre-vingt-deux ("82"), pois quem nunca teve vontade de dizer números sem o menor sentido em voz alta?

Foi o Pelé quem destravou o preço e trouxe um sorriso no rosto do vendedor, diante da minha cartada final: je suis Brésilien. Ninguém nunca espera um “sou brasileira” desse meu rosto de bochechas rosadas, pele branca e cabelo escorrido. A revelação e o futebol do rei ainda me renderam acenos de ​​bonjour ("bom dia") ao longo da semana e um maço de alface de brinde em uma outra compra.

Nessa época, lembro de ter aprendido a palavra ebale (“rio”, em lingala), o que me dava alegria ao entender o destino de algumas placas na rua, um fato que não tem a ver com francês, mas também tem muito, uma língua submersa pela outra.

Rio Sena, com construções europeias e com duas pontes.
Rio Sena.

Para marcar meu aniversário de 40 anos, conheci a cidade-luz, Paris, na minha experiência turística com croissants maravilhosos e com o desfile de moda das idosas no metrô. E muito imagens napoleônicas, naquela altivez da conquista de tudo. Em um dia, perguntei o caminho a três senhores, estava meio perdida. Não entenderam. Um coçou a boina até eu lembrar da palavra-chave: Napoléon! (o túmulo era um ponto de referência). Os três fizeram uma cara de “ahá” e destravaram o caminho.

O francês termina sendo uma língua que “um dia aprendo". Há muitas coisas que admiro. Do inesquecível O fabuloso destino de Amélie Poulain, filme de Jean-Pierre Jeunet; os capa e espada de Alexandre Dumas; passando pelas ideias de Marguerite Duras em Escrever, falando bem de amantes e mal de nazistas.

Línguas carregam tensões históricas, angústias sociais e descobertas profundas. Até é boa a lentidão em acessar esses mundos suavemente incompreensíveis. Que bom existirem traduções para lermos as ideias apaixonadas de Bruno Latour!

Do francês, o que mais admiro é um tipo de sorriso maroto-misterioso que gostaria de saber pronunciar em meu rosto.


Onde aterrar? O falecimento de Bruno Latour

Bruno Latour em Taiwan, 2017. Foto de Kokuyo, Wikicommons.

São intrincados os fluxos das zonas de forças da produção de pensamento científico. Justamente com o notável intelectual francês Bruno Latour, aprendo muito sobre o mundo e sobre a descolonização (gostaria de usar a grafia com a letra “s”, que consta tanto em espanhol quanto em português, submerso pela pressão dos estudos em francês e em inglês).

Bruno Latour nasceu em 1947 e faleceu aos 75 anos. Deixa-nos uma obra esperançosa e crítica, uma mistura tão boa de ler. Na formação, foi antropólogo e sociólogo, mas resumirei para “filósofo”, que é a designação das pessoas sábias por excelência. Como professor universitário, lecionou na Sciences Po Paris e na London School of Economics. Sempre curioso, acompanhou muitas outras pesquisas, de pasteurização a comportamento de primatas, o que lhe rendeu um pensamento profundo sobre o ato de estudar ciências. Brilha muito ao falar de ecologia política.

Talvez por estar camadas adentro do sistema hegemônico e por fazer esses mergulhos investigatórios em tantos mundos diferentes — das paisagens californianas ao cerrado brasileiro, Latour compreendeu muito bem a loucura da coisa toda. A insustentabilidade de um modo de vida.

Escolhendo a ecologia como paixão derradeira, Latour vai discorrer sobre o atual estado de catástrofe, a existência do Novo Regime Climático, que evoca uma “viva prescrição de ter que fazer alguma coisa — sem que nos seja dito exatamente o quê”. Assistimos, nas palavras do filósofo, uma profunda mutação em nossa relação com o mundo.

O mundo é imenso. E a mudança das coisas agora nos une de uma forma intrincada. Latour fará falta nos próximos tempos, mas segue conosco em muitos gestos e palavras.

Destaco as edições

  • Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno (Ubu Editora/Ateliê de Humanidades, trad. Maryalua Meyer), de onde retirei as citações [e-book].

  • A dupla Onde aterrar?: Como se orientar politicamente no Antropoceno (trad. Raquel de Azevedo) [e-book] e Onde estou?: Lições do confinamento para uso dos terrestres (trad. Marcela Vieira) [e-book], ambos da Bazar do Tempo.

  • Há muitas outras obras do autor publicadas no Brasil.

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✏️ Sábado de escrita

Amanhã, 15 de outubro, das 9h às 10h30, ofereço mais um sábado de escrita!

Encontrar um horário calmo para sentar-se e escrever não é das coisas mais simples. Assim, esta atividade guiada de escrita oferece um momento especial no mês para nos dedicarmos a escrever. É uma atividade gratuita com contribuições voluntárias.

Detalhes e inscrições via Sympla.


💌 O texto e o tempo, um final de semana sobre newsletters

Construir comunidades e conversas nunca é simples, ainda mais em um momento tão tenso. Até gostaria de agradecer a Vanessa Guedes (da antológica Segredos em Órbita) por ter pensando em organizar um encontro assim: um evento focado só em newsletters.

Com uma programação sobre temas diferentes e pessoas com experiência na ferramenta, a ideia é discutir perspectivas dessa forma de se comunicar mais calma e com uma lógica diferente de redes sociais. Contribuir para esse evento é algo que está me fazendo bem.

Participe! Será no início de novembro. Para assistir as cinco mesas redondas, cinco oficinas e ainda mesas de abertura e encerramento com mais de 30 pessoas convidadas, o valor é de R$ 48,00. Há vagas gratuitas para pessoas portadoras de necessidades especiais, jovens de baixa renda, pessoas trans e não-brancas.

As inscrições estão indo bem, então, não deixe de se inscrever! 

5 e 6 de novembro, sábado e domingo

Confira a programação

Inscrições via Sympla


#rodanews indicações de newsletters:

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  • Cartas a possíveis amigos, de Antônio Xerxenesky, com perguntas e respostas sobre mercado editorial


🎁 Para fechar: como pronunciar Roland Barthes?

Meu presente para você é um vídeo sobre a pronúncia de nomes da filosofia e artes em francês (a base é em inglês, mas acho que dá para compreender a ideia geral) do canal do James Harbeck. Maravilhoso.


😽 Merci!

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    Créditos desta edição

    Leitura sensível: Maria Carolina Casati

    Retrato de Bruno Latour: Kokuyo, Wikicommons

    Fotos e texto: Ana Rüsche

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8 Comments
Surina Mariana
Writes Sofá da Surina
Oct 15, 2022Liked by Ana Rüsche

E eu sempre me perguntei por que fui pro francês em vez de escolher o alemão... Obrigada por indicar caminhos para entrar no mundo do Latour; sempre quis lê-lo, nunca soube por onde começar ❤️

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1 reply by Ana Rüsche
Thiago Ambrósio Lage
Writes Mercúrio em Peixes
Oct 15, 2022Liked by Ana Rüsche

Engraçado que do francês eu sempre estive meio à margem. Já botei na cabeça mais de uma vez que iria aprender, comprei livros, fiz cursos em áudio, até me coloquei como objetivo ler Júlio Verne no original, mas acaba que outras urgências sempre surgem. E preciso ler o Bruno Latour! Sempre bom te ler <3

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1 reply by Ana Rüsche
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